Kianda

sábado, janeiro 06, 2007

Flashes de infância

Minha avó falava assim: "Lingüiça é que é mistura boa, um pedacinho só e já sustenta". E distribuía os pedaços: "Três pra mim, três pra você, três pro seu vô, três pro Zé, três pro Cleber". Depois apontava a faca para o prato e perguntava, não sei se para mim ou para si mesma: "Acho que dá, né?" Eu nunca concordava, mas ela jamais acrescia a cota de cada um, e, na hora do almoço, a minha fome ficava de olho no prato da mistura. Eu parecia mesmo uma morta-de-fome. Mas era só uma menina em fase de crescimento.
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Estranho vir, assim de repente, essa imagem da minha avó preparando a comida... ela, que detestava os serviços de casa e vivia me dando lições: "Você é muito boa é na caneta, aposto que não sabe lavar uma xícara". Eu ficava brava, às vezes penso que só fingia insatisfação, porque, no fundo, gostava de ouvir que era "boa na caneta". Não queria ter meus parâmetros atrelados à
roupa suja que merecia goma ou ao alumínio que precisava ser areado. E, só para provar que era muito melhor que ela imaginava, lavava a louça do almoço.
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Lavava e pensava com os meus botões: "Por que ela fala da xícara se ela mesma odeia isso?" Alguma coisa não encaixava, estava fora de esquadro, destoava... Só muito mais tarde é que percebi o jogo: minha avó jogava, sim, quem diria?
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Com ela também aprendi a arte da troca. Um dia, eu resfriada, propôs: “Se você tomar esse xarope, pode ficar com o filtrinho que o vô fez”. Eu tinha loucura pelo filtrinho, era idêntico ao de barro que ficava em cima da pia, só que menor. Meu avô era mestre na carpintaria, sabia tudo mesmo e, de quando em vez, esculpia também. O xarope tinha sabor de laranja e me dava náuseas, mas a recompensa valeu!
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Relembro essas histórias todas e um cheiro de café em coco guardado na “tuia” entra-me pelas narinas: estou ali, no fundo do quintal, debaixo da grande mangueira que fez parte da minha infância. Era ali que meus primos e eu cavávamos poços, víamos a avó mexer o tacho de sabão (e que medo de chegar perto daquela quentura!) e corríamos atrás dos frangos.
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Foi naquele fundo de quintal que, muito depois, aprendi que da infância restou o retrato da avó gargalhando no fim de uma tarde de verão.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da foto:
http://www.fazendinhadacanastra.com.br/Cozinha%205a.jpg