O elixir
Se se pensasse em cinema, seria uma cena patética. Mas era a vida sendo apresentada como um ralo cheio de cabelos: asquerosa, dolorida e ricamente encenada.
.
Tinha, a mulher, levantado cedo naquele dia. Correu a manhã toda compenetrada, trabalhando num xale de tricô. Não que fosse prendada – longe disso! -, é que, às vezes, dava-se o luxo de executar tarefas distantes do habitual manuseio do fogão.
.
E tinha sardas, o que a diferenciava dos demais. Sardas que, à luz do sol, eriçavam-se em dança no rosto meio franzido já. Não, não era velha. Era, como dizer, envelhecida. Uma velhice que não se revela no corpo, escondida nas trevas da personalidade.
.
Compunha, junto com a casa de duas janelas que davam para a rua, um papel um tanto vexatório. As raízes brancas tomavam vez nos cabelos escorridos e maltratados, como se camadas de banha tivessem, propositadamente, sido aplicadas.
.
Horrenda compostura. De vez em quando os óculos paravam na ponta do nariz e o olhar ficava distante, perdido num pensamento qualquer. Depois, como se ela ouvisse estalos diante de si, largava, rapidamente, o tricô e arrumava a passadeira para disfarçar. Lembrava-se, então, de dar água para as milhares de samambaias que cultivava.
.
O canecão vinha cheio, tão cheio que as mãos tremulavam com o peso. Um sentimento de ternura a dominava quando via a terra sorver o líquido vital. As filhinhas queridas cresciam e ficavam fortes que nem a mamãe!
.
E se ainda não foi dito, diga-se agora: a mulher não tinha filhos. Não que não os quisesse, é que não se sentia suficientemente capaz de gerá-los. Havia dias, é certo, que passava o tempo todo emburrada, louca para ter nos braços uma pessoinha que lhe fosse inteiramente submissa. Sonhava com uma boca ávida de leite roçando-lhe o peito, os sorrisinhos de gratidão encantada e as descobertas de si mesma na cria. Era, afinal, mulher. E desejava.
.
Assim como desejava que o marido, sempre tão sensato e discreto, tivesse um acesso de loucura e a carregasse à força para o mato. Tinha fantasias indescritíveis e, cheia de pudor, corava-se toda só de imaginar. Com aqueles braços, meu Deus!, que loucura! Ela, quase franzina, puxada pelos cabelos, feito no tempo das cavernas, e jogada com violência na cama. Depois, amada como fêmea no cio, cheia de gozo, inteiramente feliz. Satisfeita.
.
Mas fazia tricô sentada no sofá de napa recém-reformado quando, do nada, ouviu um grito. E outro. E mais outro. Levou um susto e não resistiu, foi ver o que era. Abriu a janela que dava para a rua e, inesperadamente, ganhou um cuspe na cara.
.
Mais que um cuspe, foi uma golfada de comida que se espalhou sobre a mulher, maculando-lhe, mais que o corpo, a alma. Inebriada de nojo, sem querer ver de onde vinha tal gesto, tirou a blusa e passou a se sacudir toda, num enorme desespero.
.
Depois viu. Era uma cigana, dessas que lêem a sorte nas mãos:
.
__ Gostou, madama?
.
A mulher, sem entender, mais enojada ainda porque a boca da cigana guardava um dente de ouro, não respondeu, procurando, a todo custo, desvencilhar-se dos fiapos de salada verde que se lhe prendiam nos cabelos e na blusa.
.
__ Gostou, madama?
.
Por dentro, ela se remoía. Humilhada, acovardada, absolutamente sem ânimo para reagir. Queria, apenas, um banho quente, daqueles de deixar a pele vermelha, e o sono profundo. Sim, a morte. Era uma mulher burra, feia, que não conseguia nada no mundo, e não queria mais viver.
.
__ Gostou, madama?
.
Havia duas lagartixas presas no teto. Uma branca e outra preta, com a “barriguinha” cheia de mosquitos. Pois desejava, imensamente, ter forças para apanhar os dois bichos nojentos e, abrindo bem a boca daquela cigana imbecil que a enfrentava, fazê-la mastigar tudo com aquele dente de ouro ridículo que insistia em brilhar.
.
Estava, entretanto, muito debilitada para reagir. Era tão submissa quanto o bebê que, de quando em vez, sonhava em seu peito. Fraca, insegura, totalmente perdida num mundo que não sabia ver nem sentir.
.
Numa briga interna, queria voltar ao tricô, ao xale, à rega das samambaias e à vida besta e pobre que sempre teve. E não podia. Diante de si estava a cigana, gorda, de vestido de babados coloridos, lotada de pulseiras, estereotipada:
.
__ Não vai dizer nada, não, madama?
.
A mulher não respondia, limitava-se a olhar-se e a olhar a outra, comparando-se, enfraquecendo-se, submetendo-se ao mundo real.
.
__ Cuspi, sim, e cuspo de novo. A senhora não merece vintém.
.
Já não sabia mais se ouvia, de verdade, ou se tudo aquilo era fruto da sua imaginação doentia. Só podia sentir, doendo-se toda, como se cavasse a ferida zangada. Tirando a última gota de sangue das próprias carnes, quase se ajoelhou:
.
__ O que foi que eu fiz?
.
A cigana soltou uma gargalhada sonora, dessas que fazem tremer os cristais na prateleira e afugentam cães e gatos:
.
__ E ainda tem coragem de perguntar?
.
Agora já não queria mais nada. Chorava. Sem ânimo, mas fundamente, derramava-se. Era a água que irrigava a samambaia e só o que desejava era ser tragada pela terra. Morrer, que outro remédio que não morrer?
.
__ Mas eu não fiz nada...
.
__ Por isso!
.
E a cigana, implacável, tomou o xale negro das mãos da outra e se enrolou, numa afronta.
.
A mulher se revoltava, cada vez mais, contra si própria e contra sua incapacidade de se defender. Ia dos olhos risonhos ao dente brilhante da outra, idolatrando-a quase, tomando-a como parâmetro de ousadia extremada.
.
Pela primeira vez na vida, teve um surto de memória: agarrou, com toda a força, a lagartixa preta que descia pela parede:
.
__ Agora você me paga, desgraçada!
.
... e a cigana ainda sorriu enquanto engolia a lagartixa. Depois, sumiu-se na rua.
.
.
.
Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
.
Tinha, a mulher, levantado cedo naquele dia. Correu a manhã toda compenetrada, trabalhando num xale de tricô. Não que fosse prendada – longe disso! -, é que, às vezes, dava-se o luxo de executar tarefas distantes do habitual manuseio do fogão.
.
E tinha sardas, o que a diferenciava dos demais. Sardas que, à luz do sol, eriçavam-se em dança no rosto meio franzido já. Não, não era velha. Era, como dizer, envelhecida. Uma velhice que não se revela no corpo, escondida nas trevas da personalidade.
.
Compunha, junto com a casa de duas janelas que davam para a rua, um papel um tanto vexatório. As raízes brancas tomavam vez nos cabelos escorridos e maltratados, como se camadas de banha tivessem, propositadamente, sido aplicadas.
.
Horrenda compostura. De vez em quando os óculos paravam na ponta do nariz e o olhar ficava distante, perdido num pensamento qualquer. Depois, como se ela ouvisse estalos diante de si, largava, rapidamente, o tricô e arrumava a passadeira para disfarçar. Lembrava-se, então, de dar água para as milhares de samambaias que cultivava.
.
O canecão vinha cheio, tão cheio que as mãos tremulavam com o peso. Um sentimento de ternura a dominava quando via a terra sorver o líquido vital. As filhinhas queridas cresciam e ficavam fortes que nem a mamãe!
.
E se ainda não foi dito, diga-se agora: a mulher não tinha filhos. Não que não os quisesse, é que não se sentia suficientemente capaz de gerá-los. Havia dias, é certo, que passava o tempo todo emburrada, louca para ter nos braços uma pessoinha que lhe fosse inteiramente submissa. Sonhava com uma boca ávida de leite roçando-lhe o peito, os sorrisinhos de gratidão encantada e as descobertas de si mesma na cria. Era, afinal, mulher. E desejava.
.
Assim como desejava que o marido, sempre tão sensato e discreto, tivesse um acesso de loucura e a carregasse à força para o mato. Tinha fantasias indescritíveis e, cheia de pudor, corava-se toda só de imaginar. Com aqueles braços, meu Deus!, que loucura! Ela, quase franzina, puxada pelos cabelos, feito no tempo das cavernas, e jogada com violência na cama. Depois, amada como fêmea no cio, cheia de gozo, inteiramente feliz. Satisfeita.
.
Mas fazia tricô sentada no sofá de napa recém-reformado quando, do nada, ouviu um grito. E outro. E mais outro. Levou um susto e não resistiu, foi ver o que era. Abriu a janela que dava para a rua e, inesperadamente, ganhou um cuspe na cara.
.
Mais que um cuspe, foi uma golfada de comida que se espalhou sobre a mulher, maculando-lhe, mais que o corpo, a alma. Inebriada de nojo, sem querer ver de onde vinha tal gesto, tirou a blusa e passou a se sacudir toda, num enorme desespero.
.
Depois viu. Era uma cigana, dessas que lêem a sorte nas mãos:
.
__ Gostou, madama?
.
A mulher, sem entender, mais enojada ainda porque a boca da cigana guardava um dente de ouro, não respondeu, procurando, a todo custo, desvencilhar-se dos fiapos de salada verde que se lhe prendiam nos cabelos e na blusa.
.
__ Gostou, madama?
.
Por dentro, ela se remoía. Humilhada, acovardada, absolutamente sem ânimo para reagir. Queria, apenas, um banho quente, daqueles de deixar a pele vermelha, e o sono profundo. Sim, a morte. Era uma mulher burra, feia, que não conseguia nada no mundo, e não queria mais viver.
.
__ Gostou, madama?
.
Havia duas lagartixas presas no teto. Uma branca e outra preta, com a “barriguinha” cheia de mosquitos. Pois desejava, imensamente, ter forças para apanhar os dois bichos nojentos e, abrindo bem a boca daquela cigana imbecil que a enfrentava, fazê-la mastigar tudo com aquele dente de ouro ridículo que insistia em brilhar.
.
Estava, entretanto, muito debilitada para reagir. Era tão submissa quanto o bebê que, de quando em vez, sonhava em seu peito. Fraca, insegura, totalmente perdida num mundo que não sabia ver nem sentir.
.
Numa briga interna, queria voltar ao tricô, ao xale, à rega das samambaias e à vida besta e pobre que sempre teve. E não podia. Diante de si estava a cigana, gorda, de vestido de babados coloridos, lotada de pulseiras, estereotipada:
.
__ Não vai dizer nada, não, madama?
.
A mulher não respondia, limitava-se a olhar-se e a olhar a outra, comparando-se, enfraquecendo-se, submetendo-se ao mundo real.
.
__ Cuspi, sim, e cuspo de novo. A senhora não merece vintém.
.
Já não sabia mais se ouvia, de verdade, ou se tudo aquilo era fruto da sua imaginação doentia. Só podia sentir, doendo-se toda, como se cavasse a ferida zangada. Tirando a última gota de sangue das próprias carnes, quase se ajoelhou:
.
__ O que foi que eu fiz?
.
A cigana soltou uma gargalhada sonora, dessas que fazem tremer os cristais na prateleira e afugentam cães e gatos:
.
__ E ainda tem coragem de perguntar?
.
Agora já não queria mais nada. Chorava. Sem ânimo, mas fundamente, derramava-se. Era a água que irrigava a samambaia e só o que desejava era ser tragada pela terra. Morrer, que outro remédio que não morrer?
.
__ Mas eu não fiz nada...
.
__ Por isso!
.
E a cigana, implacável, tomou o xale negro das mãos da outra e se enrolou, numa afronta.
.
A mulher se revoltava, cada vez mais, contra si própria e contra sua incapacidade de se defender. Ia dos olhos risonhos ao dente brilhante da outra, idolatrando-a quase, tomando-a como parâmetro de ousadia extremada.
.
Pela primeira vez na vida, teve um surto de memória: agarrou, com toda a força, a lagartixa preta que descia pela parede:
.
__ Agora você me paga, desgraçada!
.
... e a cigana ainda sorriu enquanto engolia a lagartixa. Depois, sumiu-se na rua.
.
(...)
.
Na moldura da janela, feito um quadro, restou só uma mulher e seu amargo gosto na boca..
.
Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
2 Comments:
At 9:15 PM, Anônimo said…
Temos denso e profundo, fluente.
Sandra Falcone
At 11:14 PM, Unknown said…
Érica... escreves lindamente pois fazes saltar emoçoes diversas... Sua escrita guarda sempre uma surpresa no próximo parágrafo! Parabéns! Ana Rubi - de algumas comunidades suas do orkut!
Postar um comentário
<< Home