Kianda

quinta-feira, março 01, 2007

Som do sax

Tenho que parar com isso. Ouço essa música e me lembro de meu irmão tocando guitarra e, na falta do sax, fazendo o som com a boca. Ligo essa imagem a ele de uma tal forma que o vejo morto. E ele morto me traz saudade desse dia em que abominei a guitarra e me ri da imitação do sax. Sobe por mim uma dor tão funda, como se me atirassem todas as pedras que existem. Não consigo conter as lágrimas. Meu irmão é uma pessoa linda. E eu nunca antes vi isso. Meu irmão cresceu. Não é mais criança. Namora. Dirige. E eu penso que a vida passa tão rápido e nem me dou conta de tanta coisa que perco segundo após segundo. Ando com uma terrível impressão de que vou morrer a qualquer momento. É por isso que preciso olhar mais o céu escuro em noite de estrelas. Vejo a falta de dentes no homem rústico e tenho vontade de chorar. Quando choro meus olhos ficam quase verdes. Vejo o pedreiro no alto da obra, sem proteção, e tenho medo. Vou me afastando, como se com isso pudesse impedir qualquer fatalidade. Olho a rua quase deserta. Vejo ao longe a igreja iluminada. Um homem de gravata falando ao celular no edifício quase em frente. Depois desliga, apaga a luz e sai. E lá embaixo está o vira-latas gordo alimentado pela dona do restaurante. Olho a cidade numa intensa nostalgia. Noto as luzes num acende-apaga-apaga-acende. Vidas aqui. Ali. Acolá. Em todo lugar. De vez em quando uma morte, que a gente nunca acha que vai acontecer com a gente. E um nó na garganta. E a impossibilidade de falar uma só palavra. E a vontade imperativa de saltar de pára-quedas num grito maior. Triste. Muito triste. Mas sei. Só é preciso soltar o que prendi. Ouço e reouço essa música dezenas de vezes. Ela entra fininha, vai invadindo, vai tomando conta. Eu deixo. Porque sinto falta mesmo disso. Leio um livro. E aquele bolo de cenoura ficou muito gostoso, mas me causou uma grande azia. Hoje não tem espelho. Hoje o que eu sinto é muito mais fundo. E eu nem sei descrever o que é. É. E basta. Pena é o que é. Dos que estão por aí. Dos que entram numa "furada" sem saber por que motivo. Dos que lutam, lutam, lutam. De um sorriso desdentado. Da mulher de chinelo havaiana e cabelo lambido e camisa xadrez e saia comprida. Da senhorinha do "mio". Do horticultor encasacado num dia de sol. Do menino que passa descalço pela rua. Do casal de urubus na cobertura do prédio. Da magreza daquele velhinho. Do aposentado de bengala na Caixa Econômica. De uma velhice tão perto da morte. De um bebê que desponta pro mundo. De um doente que desce da ambulância. De um amigo acidentado. De gente que vegeta. Do bóia-fria no pau-de-arara e enxada no ombro. Da meninazinha malroupida. Tudo gira. Imagens vêm e vão. Tudo se funde, difunde, transforma. Mesmo a margarida no jardim carrega um peso maior. Não a cativaram, não cativou. Meu irmão chega da rua e vem até aqui. Ouve a música. Balança a cabeça. E sai. Nem imagina o que estou pensando...
.
Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
.
Imagem da margarida: http://www.flickr.com/photos/piacere/264593986/