Kianda

quinta-feira, janeiro 18, 2007

A casa da Dona Maria

A casa da Dona Maria é o que de mais nítido guardo da minha primeira infância. Ficava na esquina, as portas e janelas davam para a rua, era branca pintada a cal, antiga, com dois pisos.
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Na sala, havia grandes sofás de mola cobertos com xales e, pelos cantos, vasos, muitos vasos. O corredor comprido e atapetado dava para a escada de corrimão vazado e, logo em seguida, para os quartos de cama, criado-mudo, armário e imagens de santos. Mas o que mais me intrigava era o enorme relógio e seu badalo repetitivo e nostálgico. Tempo eterno: eu crescia, Dona Maria enrugava. Esse relógio nunca parou!
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Tão estranho pensar assim quando se tem menos de três anos de idade! Desde esse tempo aprendi a não subestimar uma criança. Palavras que são ditas ao acaso podem ser lembradas para sempre. Eu mesma, uma vez, cometi o enorme despropósito de brincar com minha prima menor: "Eu adoro sangue! Quero jantar uma boa sopa de sangue!" Até hoje, quando nos encontramos, ela vem repetindo essa idiotice dita para assustar... e assustou, mais que a ela, a mim mesma.
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Mas nem era isso que estava falando, lembrava da casa da Dona Maria... Ah, essa casa tem mesmo um significado todo especial: meu cordão umbilical foi enterrado lá, ao pé de uma roseira branca no fundo do quintal, à porta da cozinha.

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A casa de Dona Maria e o meu umbigo. Sinto mesmo uma forte ligação, ainda posso ver a cortininha verde da cozinha balançando, a pia de pedra carcomida com duas portas de madeira e quatro gavetas, as violetas na prateleira azul. Ah, meu Deus, será que ainda existe esse lugar?
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O tempo passou e se Dona Maria ainda estiver viva deve estar muito debilitada. Ah, tempo, tempo, para onde levou minha infância? Pago o resgate para tê-la de volta, para poder sentir o cheiro das rosquinhas douradas recém saídas do forno de barro... lá estava Dona Maria com um avental xadrez e um guardanapo no ombro, sempre, todo o dia. A testa suada, de vez em quando enxugava o rosto com o guardanapo, os mesmos vestidos de todo santo dia, o mesmo cabelinho grisalho na altura do pescoço preso com grampos.
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Minha mãe chegava e me punha no chão, mostrava a roseira e meu umbigo, eu nem entendia nada, via as rosas brancas e sorria. Via tanto que guardei essa imagem comigo até hoje. Depois, Dona Maria me pegava no colo, penteava meus cachos, mostrava o gato e oferecia biscoitos. Naquela mesma cadeira de palha, ah, meu Deus!

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Era uma casa e seu segredo. Um segredo guardado no grande relógio de parede, na pia da cozinha, na roseira-dona-do-meu-umbigo, no forno de barro, na porta da sala. Um segredo chamado "vida".

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Ah, saudades, meu Deus!

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Crédito da imagem: Érica Antunes, "Uma casa em Taubaté", 2005.