Kianda

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Quase Cinderela

Matava o amor aos pouquinhos. Talvez morresse por ele, que matá-lo era sempre se deixar morrer. Havia uma necessidade de auto-proteção, como se, de um momento para o outro, fosse um caramujo todo mole saído da casca e procurando abrigo na caixa de fósforo. Nojo de si mesma por não ter tido coragem de dizer o que ia por dentro. Não suportava cobranças externas, as próprias já eram demasiado grandes. Temia o claro e adorava a penumbra. Às vezes, no meio da noite, procurava a lua. Gostava da solidão. Detestava que soubessem tudo o que pensava. Odiava ser perseguida em todas as direções. Não servia para ídolo. Preferia a beleza do anonimato e a certeza de não ser invadida no âmago. Andava sufocada. E se pegava pensando que não deveria ser assim. E era. Não desprezava o amor. Mas se sentia sem poder respirar. Não gostava de prestar contas. Não buscava um par de algemas. Chorou muito. Muito mesmo. Doeu. Ouviu o que jamais ouviria apenas por medo de se perder de si. Mas não havia espelho. Era única. Só. Própria. Não queria ser a sombra. Tampouco desejava outra atrás de si. Cansada. Desde aquela noite, matava o amor aos pouquinhos. Sempre tendo que pedir desculpas. Não era vítima. Pelo contrário. Mas enjoara de ceder sempre. E sempre a mesma tecla. E sempre procurando fazer das tripas coração para agradar. Não ganhava nada com isso. A não ser o nojo de si mesma. Lesma fora da casca. Asquerosa e indecente. Não podia aceitar que a razão sempre estivesse do outro lado. Cada um tem sua própria verdade. A dela era não se anular mais. Estava na frente. Em primeiro lugar. Cansada de dar passagem. Queria esfriar. Congelar. Matar. Mesmo que tivesse que morrer aos poucos também. Não importava mais. Não fazia sentido. Perdera a graça. Não queria mais discutir nada. Queria o espaço. Reivindicava o mundo. Ordenava o silêncio. Executava a sentença de morte de um amor obsessivo. "Libertas quae sera tamem". Não podia mais. E se fosse mesmo importante, pediria desculpas pela derradeira vez. Mas sairia pela porta da frente. Com todo gosto. Não queria a pena. Queria a autonomia. O grande gesto de se olhar dentro dos olhos na frente do espelho. Plena. Inteira. Solitária. Gostava de ter orgulho de si. Nunca teve ciúme. Nem por isso aceitou os fatos. "Há algo de podre no Reino da Dinamarca". As bruxas morreram na fogueira. Matou todas. Está de bem consigo. Resgatou-se nas profundezas do inferno. Saiu quase ilesa. Tudo por um triz, mais uma vez constatou. Apenas a ponta de um dedo ferida. Flecha que não quedou o coração.
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Érica Antunes
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