Kianda

segunda-feira, janeiro 22, 2007

O caderno de capa verde

A capa era verde. Quero dizer, verde só no verso. Na frente, havia uma estampa que me fazia sonhar horas a fio. Eu ficava olhando para aquelas pessoinhas encasacadas esquiando na neve fofa e branca tão longe da minha realidade e pensava que, afinal, devia ser bem gostoso andar de trenó...
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Era um caderno muito antigo para os meus seis anos; as folhas já meio amareladas, algumas páginas borradas... água, lágrimas, o quê? Enamorei-me dele. Tanta gente velha que nem mais existia tinha escrito ali... a primeira constatação filosófica que fiz foi: perde-se.
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Havia letras bonitas, redondas, grandes, essas me fascinavam tanto que eu tinha vontade de lamber as páginas. Outras eram inclinadas ("tortinhas!"), pequeninas, difíceis demais para mim. Quantos segredos guardariam?
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Era mesmo assim, um viver misterioso e intrigante. Quanta força para ler apenas uma frase que, lembro bem, nem gostei: "Se a vida oferecer um limão, faça dela uma limonada." Eu não tinha senso crítico ainda, mas sentia que isso era uma grande bobagem.
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Em compensação, aqueles versinhos de um tal Antônio em letras de forma cheias de personalidade – um dia eu ainda ia escrever daquele jeito, esperassem pra ver! – nunca mais se apagaram. Não me lembro de tudo, mas uma parte era assim:
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"Certa moça, a confidente
dizia isso baixinho:
– Se beijo gostasse da gente,
eu era nega um tiquinho!”
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Sei que são versos bobocas e sem valor literário, mas a rima, a sonoridade e o "tiquinho" me deixavam meio boba, olhando para o vazio, buscando uma coisa que eu nem sonhava chamar de "poesia".
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Um dia, eu tinha acabado de sair de uma caxumba complicada, ganhei um estojo de canetinhas. O sonho de toda criança, na época, era um estojo daqueles, lotado de canetinhas de todas as cores, tão raras e caras! Foi um presente, pois, que me deixou completamente feliz. Era inverno, minha mãe fazia tricô na sala e meu irmão dormia tranqüilo no berço. Um silêncio ensurdecedor. Então, fui para o quarto e me sentei no chão, ao pé da cama. Abri o caderno e, arrebatada, saquei das canetinhas e desenhei, de todas as cores, casas, nuvens, árvores, flores e corações. Num deles, vermelho, lia-se: "Mãe voss..." Era para ser: "Mãe, você gosta de mim?", mas a dúvida: "você é com 'c' ou com 'dois esses'?" me fez parar no meio.
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(...)
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Durante muito tempo a metade de um coração vermelho permaneceu lá, numa página amarelada, nas entrelinhas de outras declarações de outras tantas pessoas que eu não conhecia... até que um dia se perdeu na churrasqueira, queimado com o caderno de capa verde – verde só no verso – que eu tanto amava.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da primeira imagem: http://www.flickr.com/photos/afotografia/183355521/

1 Comments:

  • At 11:54 AM, Blogger Rosely Zenker said…

    Eu também ganhei um estojo de canetinhas, o maior de todos da Faber Castell. Mas fiquei com dó de usar, porque se acaba eu não o teria mais. Então o deixei intacto, levava-o para cá e para lá e só de vez em quando contornava algum desenho, mas só quando fosse muito especial...

     

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