Kianda

domingo, janeiro 07, 2007

Xeque-Mate

Albino Moura, "O jogo". Óleo s/ tela 105 x 130cm, 2003.
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Toda história começa com um personagem ausente. Aos poucos, ele vai tomando corpo, ganhando forma e, sem muito esforço, sai do papel como quem passeia por entre as flores do jardim. Não é metalinguagem. O túmulo brota dentro da gente antes do tempo e frutifica num susto suspenso pelo fio. Enquanto o sólido se desmancha no ar, carboniferamente, numa paródia muito mal feita e mais ainda dolorida, insiste uma coisa-sem-nome-que-se-diz-coração em pulsar no peito com uma insistência corrosiva que morde os vermes com a mesma boca com que os beija. Descobrir-se fantoche da própria criatura é quase se tornar criança diante do ovo quebrado pelas asas de um passarinho que, pelado e desprotegido, espanta por ter mais força do que supúnhamos. O "nada" é paradoxal e a epígrafe também consolida a sentença de quem não morre por fora e diz tanto por dentro.
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Essa história - que nem história é - se inicia no exato instante em que termina a construção do castelo que não existe e que, no entanto, de sagrado há. Interrupções sempre compartimentadas em gavetas são de repente batidas como se o mundo fosse um copo de leite com bananas. A fome é tamanha que o líquido desce pela garganta sem prestar a menor atenção ao gosto adocicado da fruta, restando, pouco depois, o vômito azedo que a noite expele sem piedade nem pressa. Acho que já não posso mais. Personagem de mim, quero também saltar das páginas negras de todo branco e ganhar a liberdade do ovo, mas o bico-de-pena é estúpido e continua me escrevendo. Fundo a fusão, faço uma confusão que o trocadilho se pune quando se perdoa. Não, realmente não posso mais. Mesmo regado de impávida água, o gérmen da semente não vingou e é inútil fugir da realidade. Sou uma trapezista que se estatelou num solo erosivo, alérgico à chuva, e amanheceu de pernas quebradas, impotente para qualquer consolo. Ovo de granja sem broto.
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É que a história aparece, às vezes, tecida no vácuo. A oferta figurativa permeia o mundo fático, mas a epígrafe não requer nenhuma demanda. O couro cabeludo esconde o trejeito de dedos antigos e fartos, embora, quem sabe, o brilho dos olhos permaneça mesmo na escuridão. É preciso, apenas, a certeza de encontrar no ovo um pouco mais que a omelete salpicada de cheiro verde. O simples se torna complexo logo após o primeiro movimento. Fui posta em xeque pela dor, talvez ela me mate.
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Érica Antunes
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