Kianda

domingo, março 11, 2007

Como doces na vitrine...

Eram como doces numa vitrine que eu, ávida menina de olhos brilhantes, queria devorar. Tortas de chocolate e trufas rejeitadas pelo mundo e postas ao acaso, à mercê da corrosão do tempo. Rostos interrogativos, confusos, cobertos de um glacê estagnado chamado velhice. Talvez não passassem de terra desidratada, vasos de argila prestes a se quebrar. Passos miúdos, bocas murchas de sorrisos sem dentes, gestos lentos. Se sofressem um só empurrãozinho, voariam para o solo e, incrível, do solo para o infinito.
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Não pude estabelecer contato. Não soube. À guisa da observação mantive minha atitude. E, de braços cruzados, reparei os pezinhos tão pequenos daquela que nunca mais sairá da cadeira, condenada à prisão de si mesma. Criança, criança que se encanta com o ninho na árvore! Era eu. Era ela. Éramos nós.
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E me peguei num pensamento solitário e tão penoso que remexe as vísceras, as vértebras, o sangue: ela me é. Daqui a muitos anos, talvez, mas me é. Ou o inverso, que o círculo operante e satisfativo é a determinação do ser e do não-ser, como se estivéssemos todos numa enorme roda-gigante de um gigantesco parque de diversões. Que tudo se transforma é fato, o segredo está na aceitação da inexistência da perda.
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Meu devaneio sabatino sugere um balanço de vida: mais ganhei ou mais perdi? Não posso responder o que não entendo. Meu limite se esmera ao som da gaita. Se se pensar em funcionalidade, é o que resta à figura arquejada, de olhos fundos e magra que se me impõe.
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Tenho olhos tão brilhantes e não consigo enxergar a beleza do mundo. Mas a ouço. E o vento morno da quase primavera se lança contra minha pele e me toma de uma sensação de nudez. De repente, não há mais doces na vitrine. Há peixes. Basta um salto para que me torne um deles. Depois de entrar, imagino que não queira sair. É o medo. Um dia, é certo, haverá rebelião. Os peixes, um a um, seguirão seu caminho para além dos limites do aquário. É a sina.
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Eles me incomodam. Creio que eu, do mesmo modo, incomode-os também. Não consigo achar graça na cena da senhora esclerosada paquerando o rapaz. Ela não sabe. Se bem que, talvez, eu também não saiba. O de chapéu apanha, às escondidas, um pedaço de bolo. "Velho safado!", ri-se a enfermeira enquanto o manda para fora. Bolo é ritual, é hora marcada, é festa. O que não vejo é a festa.
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Mas há vida e sou ávida em todos os sentidos, quero o deleite e também a fome. Como peixe ou doce, em aquário, vitrine ou vaso de barro...
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Érica Antunes