Kianda

terça-feira, março 13, 2007

A mulher e as pamonhas

Sempre que ela abria a janela da sala, via no mundo um grande formigueiro. As pessoas caminhavam de um lado para outro: iam a mulher e a bolsa, o menino e a mochila, o rapaz e a pasta. E ela sabia que, se ficasse ali, no mesmo lugar, horas depois estariam de volta: a mulher e a bolsa, o menino e a mochila, o rapaz e a pasta.
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Mas, naquele dia, ela foi contaminada pela febre do novo. Na esquina, apontou uma brasília e seu auto-falante:
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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Primeiro ela riu. Era coragem demais alguém sair numa brasília azul e barulhenta com um auto-falante que deformava a voz, em pleno sábado, no centro da cidade!
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Depois, sentiu uma mistura de piedade e inveja. O pamonheiro era um pobre, mas feliz. Não se escondia num personagem, era ele mesmo, sem vergonha, dono de uma brasília azul. Nem se importava com a voz deformada, queria era vender suas pamonhas e ganhar seu dinheirinho em paz.
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E, vendo a pequenez da criatura, tornou-se ela toda menor. Teve ganas de se bater, puxar-se pelos cabelos, beliscar-se, morder-se. Mas se conteve. Algo como "você precisa se aceitar" pulou lá do fundo do peito.
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Quem disse que ela não se aceitava? Claro que se aceitava, o caso não era esse e o "eu" lá de dentro entendia mesmo tudo errado! Havia uma grande diferença entre a autocrítica e o ódio. Ela estava apenas avaliando o que sentia, que idéia! Era a velha mania de emprestar adjetivos às pessoas que a incomodava. Pessoas deviam ser pessoas, vistas em sua plenitude. Essa história de "primeiras impressões" detonavam as possibilidades. Uma vez posta a tarja, para sempre a tarja. Mas e o pamonheiro? O que era ele, afinal de contas?
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Ela não sabia e o fato de não saber mexeu com todos os seus miolos. Para tudo sempre houve uma resposta na ponta da língua, como é que era possível, assim de repente, tudo ficar tão escuro, vago, distante? Era para rir ou chorar diante do pamonheiro? Ou o que ele provocava era pura indiferença?
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Não. Indiferença não era, ela estava condoída e alegre ao mesmo tempo, como é que podia? Como é que invejava um pobre coitado esgoelando no meio da rua num calhambeque daqueles?
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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Que coisa mais brega! Aquele vocativo no meio, aquela repetição, aquela exaltação a uma coisa tão boba feito uma pamonha, como ele tinha coragem?
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E que vontade era essa, tão repentina, que lhe surgira?
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Não se conteve. Abriu mais a janela e fez coro:
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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E, pela primeira vez na vida, sentiu-se plenamente feliz.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

1 Comments:

  • At 11:21 AM, Blogger Rosely Zenker said…

    Uma senhora do interior uma vez me falou que ficava escandalizada com este carro sonorizado. Ela entendia: "Maconha, maconha, maconha!..."

    Uma curiosidade: sabia que o grande negócio do homem cuja voz grita pamonha em todo o Brasil nunca foi pamonha? Ele vende fitas com este anúncio, receitas de pamonha e um manual de como ter um bom empreendimento de pamonhas.
    Mas pamonha mesmo, nunca vendeu.

     

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