Kianda

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Os frangos de Dona Rosane

... porque quando somos crianças tudo é correto, tudo é feliz. Ainda me lembro de uma velhinha que criava frangos para vender numa pequenina cidade do interior:
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Era franzina e usava óculos. Escondia os anos vividos sob um lencinho alaranjado, cheio de florinhas azuis, presos com ramonas nos cabelos brancos. Usava sempre vestidos (desses que as senhoras de bastante idade gostam) ou saias que deixavam à mostra a barra da anágua. As pernas, ou o que se via delas, eram cobertas por varizes roxas e azuis, todas grossas. Nos pés, sandálias. Meu pai dizia que Dona Rosane parecia uma bruxa, só faltava a verruga na ponta do nariz.

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Morava com uma neta, que cuidava da limpeza. Um pecado, porque a menina sofria nas mãos da outra. A casa era muito antiga e pintada de verde-água, só a pequena área da porta da entrada era rosa. Eu tinha medo de andar pela casa porque o assoalho fazia "toc, toc" e eu pensava que podia desmoronar e então eu cairia bem em cima dos frangos, que ficavam em repartições organizadas pela própria Dona Rosane, debaixo da casa.

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Os móveis eram extremamente modestos e os colchões de mola faziam barulho quando sentávamos, Eliane e eu, para trocar as figurinhas que vinham nas gomas de mascar. Banheiro não havia e, para o banho, cada uma se encarregava de puxar água do poço e encher a própria bacia. No frio, a água era aquecida num enorme caldeirão de alumínio.

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Lavavam a roupa num tanque improvisado ao lado do poço. Enormes varais eram preenchidos pelas peças humildes de toda a vizinhança.

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As galinhas e os frangos ciscavam no quintal emitindo o seu "có, có" que me divertia. Procuravam minhocas e eu sentia nojo só de imaginar aquela coisa toda mole na boca, ou melhor, no bico daqueles coitados.

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Um cachorro magro e pulguento sempre nos enredava as pernas e quando, disfarçadamente, eu o mandava embora, ele mirava meus olhos e pedia: "Deixa eu ficar aqui, eu não estou fazendo nada". Como se me arrependesse, acreditando na piedade do cachorro, não mais insistia para que largasse meus pés.

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Eu gostava de ver Dona Rosane matar os frangos. Eles se batiam, as asas pra lá e pra cá, o pescoço molenga, os pés agitados. Depois chegava a água quente, o mergulho dos cadáveres nela, o arrancar das penas. Mamãe sempre encomendava frangos: "Olhe, Dona Rosane, eu quero um bem grandão. Aquele ali." E indicava o escolhido, que parecia adivinhar que seria o próximo sacrificado.

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A hora mais divertida era a de agarrar os frangos, porque eles eram muito ágeis e corriam demais para as pernas de Dona Rosane. Ela, então, encurralava-os e com "mãos-de-gato" segurava-os pelos pés.

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Era engraçado como uma senhora evangélica, devota do Senhor Jesus, tivesse tamanha habilidade e destreza com a faca. Eu ficava esperando o seu sorrisinho disfarçado quando cortava pela metade a sua vítima, estralando-lhe os frágeis ossinhos. Nesta etapa, eu imaginava se ela não era, de fato, uma bruxa.

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Depois de bem picado, embalava o frango num saco plástico de açúcar cristal ou de arroz e prendia-lhe a boca com uma tira de tecido. O freguês chegava e ela entregava o pacote... a vítima.

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De vez em quando mamãe reclamava que o frango devia ser velho, porque não queria cozinhar direito, estava duro. Mas nunca disse nada à vendedora e sempre fazia questão de escolher, ela mesma, o seu frango. Pedia-me para vigiar se a velha matava mesmo o que ela escolhia. Dona Rosane sempre cumpria a ordem, mas mamãe sempre dizia que eram frangos velhos. Só em casa, porém.

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É interessante quando lembro deste passado já remoto, em como me divertia com a cena dos frangos, da vida daquela gente.

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Acho que minha visão, hoje, seria diferente: a Dona Rosane seria uma pobre mulher que batalha para sobreviver; os frangos, nada além de mercadorias; o cachorro, um animal de estimação imundo; a neta, uma desgraçada pela vida, e por aí a fora.

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Quando crianças, a rotina nos parece uma lenda, repleta de novidades, de invenções, de bondade. Um pequeno acontecimento pode nos marcar para sempre.

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Mas a criança é sábia. O adulto, mero discípulo espectador.

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fontes das imagens:
http://www.flickr.com/photo_zoom.gne?id=366242528&size=o
http://www.flickr.com/photos/christinalutze/98050387/

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