Kianda

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Arroz, feijão, suor e filhos

É uma sensação de vazio a que de repente vem com o barulho dos passos que não conheço, como se, com a mão, das asas de uma borboleta fizesse um branco pó rutilante que se perde no ar sem vento. Embora os olhos se molhem a todo instante, o incômodo é macio e preciso, de qualquer jeito, cultivar a estranheza de me sentir só no meio da multidão.
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Os passos continuam entrando pelos ouvidos, o sangue se contamina e já não sou eu. Passo a personagem de mim mesma e vivo num mundo de arroz, feijão, suor e filhos. São quatro ônibus por dia e salário mínimo no fim do mês. O cobrador cobra o passe e os passos que ouço agora são meus. Faço parte do todo, desse aglomerado de vidas que se escondem debaixo da casca para evitar o peso. Os olhos são turvos, as mãos machucadas, o sofrimento muito.
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Torno à realidade e desejo falar a uma moça que não tome o sorvete da máquina, é de uva, a máquina é suja e vai dar dor de barriga. Nada digo, mas o seu gesto de levar a bola gelada à boca e envolvê-la com a língua me produz engulhos. Deve ter cáries. Cáries e vermes, vermes do marido morto a facadas no bar perto da casa. Engulho maior ao associar o sorvete com o morto. O homem com quem ela trepou anos a fio está morto. O corpo vibrando sobre o dela hoje não passa de um cadáver.
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Minha pele é a da mulher. Tenho um filhinho de cinco anos e faço faxina para o pão de cada dia. Moro na última casa da última rua do último subúrbio, ando de chinelo mesmo em dias de frio, de vez em quando meus dentes reclamam de dor. Nem sei por quê inventei de tomar sorvete. Está frio, ando de chinelo, não tenho capote. E meus dentes doem.
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Feito cobra, saio da pele. A chuva fina é insistente. Olho para o chão e vejo dezenas de barras de calças molhadas. Há pernas tortas, direitas, curtas, compridas, finas, grossas e as do velho. Caminha miúdo por entre as gentes, usa bengala, chapéu e guarda um relógio e sua corrente no bolso da calça. Ninguém o espera. A velhice é que vem apressando os passos.
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Vejo-me, então, deitada de mãos cruzadas num caixão barato. O velório é como tantos, de velas e alguma flor. Terra que me cobre o corpo, escuro mais escuro sem luz no fim do túnel. Durmo em paz. Até quando, não sei.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da imagem: http://www.flickr.com/photos/pedromotta/75406053/