Kianda

terça-feira, fevereiro 13, 2007

O banquete

Início da primavera com cheiro de vela. A cera derretida lavra a pele e os olhos acetinados de obscura mágoa. Na parede, a sombra. Mãos que imitam seres. O nada interno não se despetala no vento, a cabeça no travesseiro sente na pele ardida o frescor da quase noite.
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Quer se levantar, mas vê duas marquinhas negras na parede. Parecem mosquitos. Um casal de mosquitos. E são só manchas. Ouve o zunido inexistente. Centenas de ovinhos, de repente, brotam ao redor. Aninha-se também. Dali a pouco haverá festa. O mosquito-pai baterá as pequenas asas de alegria para, logo em seguida, voar para a luz. Morrerá abraçado ao lustre.
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Ele vê tudo.
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Vê tanto e se sente tão cego, rebento solto na palma do mundo, incapaz de responder aos primeiros tapas. No criado-mudo, comprimidos alinhados. Cada hora é uma hora. Os lábios roxos de tédio. Lá fora, os primeiros acordes da primavera. Há a vela. A mágoa. A sombra. Há, sobretudo, um homem desnorteado debaixo das cobertas.
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Nenhum sol, nenhuma flor, nenhuma brisa naquela carcaça. Só um bando de urubus é que aguarda o banquete em alegres sobrevôos.
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Dor de um, alegria de outros. É a lei do mundo.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com