Kianda

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Mosaico

A vida da gente vai colecionando estórias...
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Hoje me lembrei de uma mulher que criava porcos no fundo do quintal e se chamava Aparecida - Cida. A casa dela ficava quase em frente à nossa e fazia fundos com o Vinte e Cinco, uma ruazinha tenebrosa, sem água encanada e com esgoto a céu aberto, onde moravam os bêbados e os malandros da cidade. Minha mãe me proibia de chegar perto.
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Nossa casa ficava numa baixada, na esquina, tinha grades bem altas e um pinheiro na frente. Eu morria de medo que o pinheiro ultrapassasse a altura da casa porque o Nenê, um pirralho de uns treze ou quatorze anos que morava na casa do lado, dizia que se isso acontecesse alguém da família morreria. Esse Nenê vivia me pregando peças. Um dia apontou para um fogo bem longe e disse que aquilo era o boitatá. Quase morri de desespero.
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Minha mãe juntava lavagem para a Dona Cida e lembro que todos os dias, ou dia-sim-dia-não, ela aparecia com um balde para despejar a lavagem que armazenávamos na lata de tinta. Às vezes, ficava conversando um pouco, contando sobre as plantas e os porcos. Depois que ia embora, minha mãe comentava que tinha nojo daquela mulher que pintava as unhas de vermelho, fazia permanente do pequenininho e vivia recebendo homens. Eu não sabia o que significava "receber homens", mas imaginava que aquilo não devia ser muito certo. Até que um dia minha mãe contou como é que se faziam os bebês e então fui ficando mais espertinha. O pai da Zezinha ia sempre na casa dela, entrava pelo portãozinho da frente, a cerca era de balaústre e tinha quase um matagal em redor. Aí, eles sentavam um pouco na varanda, decerto para combinar o preço, e depois entravam. A gente percebia a luz da janela da frente acender e depois apagar. Minha mãe não me deixava ir lá, mas eu gostava de ver os porcos e de vez em quando dava uma escapada. Um dia, entrei no quarto dela e vi a cama com uma colcha vermelha cheia de almofadas e a penteadeira lotada de bibelôs baratos. Fiquei encantada!
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Do lado da casa da Dona Cida, ficava a da Dona Dita, que criava frangos e tinha um quintal bem grande, de onde dava para ver o Vinte e Cinco, cuja pobreza me fascinava. No Vinte e Cinco havia sempre uma criança chorando, descalça, de chupeta na boca, chamando a mãe. Lá, tudo era tão distante da minha vida tranqüila e certinha, com casa bonita, empregada, dois carros na garagem, colégio particular e um batalhão de brinquedos. Eu não me condoía, não, pelo contrário. Gostava de ver a miséria. Não era, porém, um gosto de escárnio... talvez de susto. O susto de viver.
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A Dona Dita criava uma neta, a Flávia, que falava "Borchechinha" para a boneca que ganhou da mãe que morava longe, no Rio de Janeiro, com o segundo marido e a filha do novo casamento. Quando a Flávia dizia "Borchechinha" eu queria voar no pescoço dela, aquilo era demais para os meus ouvidos. A gente fazia casinhas debaixo da casa, no porão, e as dividíamos com as galinhas que a Dona Dita criava para uso e para venda. De vez em quando também tinha um bando de cachorrinhos novos. Se não eram cachorrinhos, eram pintinhos ou gatinhos: o zoológico. Morava lá, ainda, uma filha da Dona Dita que já era casada e tinha dois filhos, a Charlene e o Bruno. Muito mais tarde, soube que a Charlene morreu de meningite (ou hepatite? Tem hora que a memória falha.). Ela era uma menininha chata e chorona que atrapalhava as nossas brincadeiras, mas era também muito bonitinha, de cabelo liso e redondo. No aniversário do meu irmão, minha mãe a sentou na ponta do armário para que aparecesse nas fotos. Assim é que a imagem da Charlene ficou imortalizada para mim.
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Eu não gostava de brincar de casinha, só de montá-las. Depois que todos os móveis já estavam no lugar e que, aí sim, era a hora de começar, eu queria parar. As meninas morriam de ódio! Minha paixão de verdade era uns bonequinhos pequetitos que se chamavam "Playmobil". O Marcelo tinha a coleção completa. Eu não, só alguns, com cavalinho, espada e cocar, eram índios norte-americanos. Mas o melhor de tudo era o disco-voador! A avó do Marcelo, que só tinha ele de neto, deu um de presente de aniversário e aquilo era a coisa mais maravilhosa que a gente já tinha visto. Mas o Marcelo nem ligava muito para os presentes porque ganhava muitos e logo estragava tudo. Uma vez, ele quis fazer um barco à vela e pôs uma vela acesa dentro do barquinho de papel debaixo da cama. Pegou fogo no colchão e por pouco a casa toda não foi para o brejo. Com o Marcelo eu ia ao barzinho comprar "sorvete-quente", que não passava de uma maria-mole presa numa casquinha de sorvete e com uma colherinha de brinde. Mas que delícia era aquele doce!
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E que delícia era a vida!
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

2 Comments:

  • At 10:10 PM, Blogger Rosely Zenker said…

    Ai, que este post me deu a sensação de estar vendo o fim do mundo via satélite.

     
  • At 6:36 PM, Anonymous Anônimo said…

    Nossa, nunca vi algo parecido com a forma com que entrei em contato com este texto. Primeiro apareceu uma imagem retratada nele numa conversa, depois ele surgiu inteiro num click, como quando você levanta a tampa de um pote de doce. Lindo o texto e as memórias do cotidiano longinquo que ele resgata. Parabéns.

     

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