Kianda

sábado, fevereiro 17, 2007

Era uma vez uma só vez...

Não sei se sou eu que ando sensível demais...
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Sei menos ainda se a cena que vou contar tem alguma importância, talvez no fim dessa crônica você se arrependa de perder tanto tempo lendo bobagens. Confesso que eu mesma, às vezes, duvido desse meu jeito maluco de ver nas coisas mais que o que elas querem dizer. Na mesma hora, porém, penso que a delicadeza está justo naquilo que a gente nem acredita que cause efeito e que, no entanto, efeito é.
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Estou dando mil e uma voltas e ainda não descobri como começo. Pensei em ir direto à cena, depois ponderei que sem uma gênese é impossível.
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Então, pergunto aos meus botões: digo que estava cansadíssima depois de um dia inteiro de aula, esperando um ônibus que nunca chegava, para rodar mais de duzentos quilômetros ainda? Conto que estava sentada ao lado de uma conhecida e que oscilava entre ficar ali e comprar um saco de biscoitinhos caseiros que uma moça vendia lá do outro lado? Escrevo que fiquei indignada com as quatro crianças descalças pedindo esmola enquanto o pai, o tio ou sei lá quem, bem vestido e de tênis importado, examinava as lixeiras sem disfarçar? E que, naquela noite, a lua era cheia? Que eu tinha um pouco de fome, mas pensava que se gastasse o dinheiro faltaria depois? Que uma velha não esperou a liberação da catraca e passou com a bagagem? Que a bunda da gorda estava tão apertada no jeans que sobravam banhas para todos os lados? Que um homem sentado na cadeira alaranjada do outro lado assobiava?
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Desisto e resolvo nada-falar-falando-tudo:
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Fui comer uma coxinha, é isso. De frango e sem refrigerante. Na mesa ao lado, havia uma mulher com duas crianças. Mãe e filhos, pensei. A coxinha ia se dissolvendo na boca e os ouvidos na conversa alheia. O menino mais novo sentado na frente e a menina de uns quatro anos à direita da mulher. Deusa-Mãe-Toda-Poderosa. Comiam confeitos de chocolate. As crianças, que a mulher só olhava. Havia, também, quatro bombons. Dois para o menino, dois para a menina. Um branco e um preto para cada. Felizes da vida, ambos. Rindo. Contando histórias. Crianças.
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Até que a mãe pediu um bombom para a filha. Que negou. Criança.
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O menino grudou nas mãos os dois chocolates, protegendo-se. Pequeno demais, ele.
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A mulher entristeceu e depois se zangou: "Tá bom, não quero."
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Arrependimento: "Pega, mamãe, eu só tava brincando."
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Mas a Criadora-do-Céu-e-da-Terra, com sua onipotente presença, anunciou: "Não, você ridicou, agora a mãe não quer. Pode comer."
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Condenada, a menina se debruçou sobre a mesa e chorou, chorou, chorou e chorou mais ainda. Era para a mãe comer. Soluço. Ela só tinha brincado quando disse que não ia dar. Outro soluço. Se a mãe não comesse, ela também não ia comer o bombom. Soluços seguidos.
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Era uma vez um bombom.
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Era uma vez uma menina que cresceu antes da hora.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com