Kianda

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Já estive, nunca fui...

Um dia, há muito tempo já, estive escoteira. Digo "estive" porque nunca "fui", de fato, apesar dos freqüentes e incisivos ensinamentos de que "uma vez escoteira, para sempre escoteira".
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O primeiro dia foi terrível, eu nem sabia o que era uma "patrulha". Na hora do lema, aquela gritaria: "Vem pra minha!", "Corre aqui que é hora da formação!", e eu, feito boba, sem saber para onde ir, acabei enfileirada na "Raposa". Aprendi rapidinho:
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"Reorô-reorá
Nike-nike-naiolá
Zaizô-zaizá
Ipi-ipi-piapá:
Raposa!"
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Lembro outro dos muitos lemas:
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"Tiribum-araruê
Tiribum-aracatu
Tim-tim-catapimba
Rô-rô Castelo Branco!"
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Eu achava tudo tão esquisito, aquela gritaria, parecia concurso de quem berrava mais. Mas era lindo ver todas nós, meninas, iguaizinhas, de saia e camisa cáquis, chapéus, tênis pretos e meias brancas, só destoando na cor do lencinho ao redor do pescoço...
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Apesar de tudo, eu não me sentia feminina, não ali... vivia me olhando e procurando uma ou outra presilha, uma unha pintada, um anel ou pulseira... cadê? E pensava mais: para que aprender a dar laços e nós se nunca vou querer me aventurar numa mata, se vou adorar ficar em casa com meu marido rodeada de filhinhos nos fins de semana?
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Ia pensando enquanto a Gabriela, a chefona, apitava: FORMAÇÃO!
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E lá vinha a correria!
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Credo, até lembrava o "marcha-soldado-cabeça-de-papel"...
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... quem disse que eu queria ser soldado? Eu não!
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E acampar? Deus me livre... tomar água de rio, banho de canequinha, dormir em barracas, ser corroída pelos pernilongos, comer lesminhas e besouros? O que eu estava fazendo ali?
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Já pensou se um dia eu ficasse menstruada no acampamento? Ai, que vergonha, o que eu ia fazer nesse caso?
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Ah!, a Kelly ia me pagar... e eu, burra, por que aceitei? Fui na onda, era moda, tão bonito estufar o peito e falar: "sou escoteira"...
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Lembro-me da Patrícia dizendo que a boa ação daquele dia tinha sido ajudar uma velhinha a atravessar a rua. Mentira da grossa, a tal da Gabriela olhou feio...
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... nunca fui dada a essas coisas, tão pacata, tão quietinha no meu canto... sempre preferi observar...
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Por isso "estive" escoteira e nunca fui. No mês seguinte já não apareci, apesar da bronca da minha mãe, que tinha comprado o uniforme e tudo o mais: "fogo-de-palha", é o que ouvi durante um bom tempo...
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Mas não dava. Eu ia matar a "menina" de dentro e de fora, simplesmente não havia sentido naquilo que vinha fazendo... não para mim.
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... eu gostava mesmo era de pegar meu diário e ficar sentada debaixo da tenda, sonhando, sonhando...
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... de vez em quando escutava:
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"Reorô-reorá
Nike-nike-naiolá..."
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... era meu outro lado batendo à porta: nunca atendi!
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

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