Kianda

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Pão de migalhas

Perdi o sono na madrugada. Abri os olhos e, na janela, meu sininho de vento amanhecia nervoso. As carroças passavam na avenida e os varredores conversavam animadamente. Olhei para baixo como se, naquele meu pedaço de mundo, pudesse ver a Terra inteira. Por um instante, compreendi. Lá do Columbia, tudo não passava de um ponto azul. Emocionante ponto azul. Meu cinza de dentro escapou pela boca amarga. Escovei os dentes e, pela primeira vez, pensei na aversão aos excrementos. Entendi a criança que chorou ao dizer adeus ao cocô enquanto a mãe apertava a válvula da descarga e me olhei no espelho. Uma pequena vontade de dizer também adeus. Adeus àquelas idéias que ousavam interromper a hora do meu sono mais tranqüilo.

Mas não podia mais. A sartreana náusea era minha, a vida se convertia num buraco negro em que varredores de rua se levantavam às quatro e meia para manter as aparências. Também o lixo humano fica preso no abismo colateral das vísceras e, se aparece, é rejeitado, descartado e destruído. Por isso, mais uma vez, me enterneci com a criança chorando diante da obra tão vil e abjeta para o mundo, mas tão bela e tão pura para ela que faz crer que a infância é, de fato, a mais sábia das idades.

Depois, pensei nos carroceiros. Nos dias de hoje, ainda? Leiteiros e padeiros de um tempo que ficou no lá longe, quando, antes de dormir, mamãe deixava a vasilha coberta com um prato para não passar bicho. No outro dia, eu acordava e, com a cara da maior felicidade, verificava: "Manhê, o leite já chegou". Ela vinha apanhar o canecão porque era muito pesado para mim, e eu seguia atrás das chinelinhas cor-de-rosa dela. Mamãe, então, me punha sentada numa cadeira e eu ficava olhando aquela mulher tão alta e bonita preparando o café da manhã. Papai buscava o pão na carrocinha do padeiro e os dois se sentavam também à mesa. Era uma paz tão profunda que eu tinha medo de existir.

Mulher feita, hoje, quero, às vezes, vencer o medo e gozar da mais plena felicidade. Por alguns instantes, consigo, mas, logo que me lembro da sensação que tinha em criança, percebo que o medo do medo é maior que a vontade. Não é fácil transpor barreiras, aquilatar juízos, conferir antídotos. A vida está aí e o mundo não muda. Ou demora tanto que se torna demasiada a espera. E penso com meus botões que, já que é assim, melhor comer as migalhas que morrer de fome.

... ou, quem sabe, com elas amassar um novo pão.

Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

Fontes das imagens:
http://www.flickr.com/photos/kozievitch/207720005/
http://www.flickr.com/photos/kreuz/278558510/