Pão de migalhas
Mas não podia mais. A sartreana náusea era minha, a vida se convertia num buraco negro em que varredores de rua se levantavam às quatro e meia para manter as aparências. Também o lixo humano fica preso no abismo colateral das vísceras e, se aparece, é rejeitado, descartado e destruído. Por isso, mais uma vez, me enterneci com a criança chorando diante da obra tão vil e abjeta para o mundo, mas tão bela e tão pura para ela que faz crer que a infância é, de fato, a mais sábia das idades.
Depois, pensei nos carroceiros. Nos dias de hoje, ainda? Leiteiros e padeiros de um tempo que ficou no lá longe, quando, antes de dormir, mamãe deixava a vasilha coberta com um prato para não passar bicho. No outro dia, eu acordava e, com a cara da maior felicidade, verificava: "Manhê, o leite já chegou". Ela vinha apanhar o canecão porque era muito pesado para mim, e eu seguia atrás das chinelinhas cor-de-rosa dela. Mamãe, então, me punha sentada numa cadeira e eu ficava olhando aquela mulher tão alta e bonita preparando o café da manhã. Papai buscava o pão na carrocinha do padeiro e os dois se sentavam também à mesa. Era uma paz tão profunda que eu tinha medo de existir.
Mulher feita, hoje, quero, às vezes, vencer o medo e gozar da mais plena felicidade. Por alguns instantes, consigo, mas, logo que me lembro da sensação que tinha em criança, percebo que o medo do medo é maior que a vontade. Não é fácil transpor barreiras, aquilatar juízos, conferir antídotos. A vida está aí e o mundo não muda. Ou demora tanto que se torna demasiada a espera. E penso com meus botões que, já que é assim, melhor comer as migalhas que morrer de fome.
... ou, quem sabe, com elas amassar um novo pão.
Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
Fontes das imagens:
http://www.flickr.com/photos/kozievitch/207720005/
http://www.flickr.com/photos/kreuz/278558510/
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