Kianda

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Uma mulher no terraço

Ela não tem nome. Quer dizer, deve ter, eu é que não sei qual é. Por convenção, seja Laura. Por que Laura? Don't even ask!, eu diria numa aula de inglês. Não sei. Achei que Laura combina com ela. Tem cabelos curtos, usa um vestido sem mangas, de botões na frente, estampado, e chinelos vermelhos, de dedo.
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Nenhuma razão existe para escrever sobre Laura, exceto o marasmo do domingo visto através da janela. Ela está sentada numa cadeira de área. E no terraço. Sem fazer nada, olhando o vazio, quieta, num descanso, talvez. Mas eu, com essa mania de inventar histórias, num piscar de olhos enxerguei uma mulher e seus dramas.
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Esta é a hora de que mais gosto. A noite, de mansinho, comendo o dia, os azuis e vermelhos do céu cedendo ao cinza e, depois, ao negro. É lindo! E aqui na minha cidade há pássaros por todos os lados. Eles revoam, formam grupos, dançam nas árvores e fazem uma gritaria ensurdecedora. A mulher me pareceu tão alheia a tudo isso, lá, sentada na cadeira, as pernas esticadas, os braços soltos numa atitude despreocupada.
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Depois, imaginei que o "despreocupada" é por minha conta, que cada um sabe bem os problemas que tem (e que se dane a rima!), "onde o calo aperta", como dizia minha avó. Vem, em mim, com a quase-noite, os sons e os cheiros do mundo e a imagem da mulher de vestido de botão na frente, uma sensação de gostosura. Viro uma quase-Maria entrando na casa feita de doces!
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Numa mistura de inocência e culpa, invadi a intimidade de Laura e seu terraço. Talvez porque amanhã seja segunda-feira, talvez porque os cabelos dela sejam curtos, ou, quem sabe, porque estou meio sensível demais. Racionalmente não há, eu sei, nenhuma razão para me impressionar com a cena.
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Laura é uma mulher de meia idade. Deve ter feito macarronada com molho vermelho hoje. Ou frango assado com maionese. Os filhos - talvez os netos - passaram o dia com ela, bagunçaram a casa, ela deve estar esgotada e pensando que amanhã - segundona - tudo começa de novo, e lá vem faxina!

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Daqui a pouco, assim que a noite chegar por completo, entrará em casa, esquentará a comida - resté de l'almocé - e fará o prato para comer na sala, na frente da tevê, junto com o marido gordo e careca que passou a manhã lendo jornal, a tarde toda dormindo e agora arrota a cebola que engoliu feito uma draga.
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Laura é uma mulher triste. Não tem com quem desabafar, cansada da rotina de todo santo dia acordar, levantar, lavar, passar, cozinhar, fazer tricô e ver novela. Faz sexo uma vez a cada quinze dias. O marido perdeu o interesse, ela achou tudo muito estranho no começo, imaginou uma dúzia de amantes, quis morrer de desespero. Depois virou coisa normal, banal, e Laura esqueceu o que é prazer. Virou amiga dos padres, carola, catequista.

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De repente, caio em mim: nunca vi aquela mulher de perto! Dou outra espiadinha pela janela e tenho vontade de acenar: "Oi, vizinha, tudo bem com você?" Mas ela nem está mais lá... entrou, foi esquentar o jantar...
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da imagem: http://www.flickr.com/photos/renatadiem/211930974/