Kianda

terça-feira, janeiro 30, 2007

Uma sacola ao vento

Para o Nicolas, que talvez eu não volte a ver jamais...
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Uma sacola ao vento é, às vezes, o quanto basta para invadir a alma. Nicolas chorava. Acordou e se viu sozinho num ônibus enorme para os seus três ou quatro anos. Olha daqui, d’acolá e nada do rabo-de-cavalo aloirado da mãe. Sabe-se lá o que sentiu nessa hora, ali, no meio de tanta gente desconhecida e grande. Não sei, mas posso imaginar... entre um soluço e outro, Nicolas se afundava cada vez mais no banco, como se nele procurasse um útero qualquer, diminuto e desprotegido.
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Acordei com a fala mole de um senhor explicando ao garoto que a mãe já voltava, só tinha ido ao banheiro. Nicolas engolia a dor do abandono: seria verdade mesmo o que o homem dizia? Não, não era capaz de acreditar. Os fatos, quando se tem três ou quatro anos, falam mais alto que o pensamento: a mãe tinha ido embora para sempre, ele não tinha mais mãe. E, incrivelmente, soluçava contido, o que me causava uma certa aflição... então um garotinho dessa idade já precisa ativar os tais freios inibitórios? Esse mundo está mesmo perdido...
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Não agüentei mais:
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__ Oi! Você tá preocupado, né? Mas, olha, não precisa, porque a sua mãe só foi ali no banheiro e já volta. Ela não levou você porque você estava dormindo e ela não quis te acordar. Mas ela já volta, viu?
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Nicolas pôs os óculos:
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__ Hum?
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__ É, sim, ó. Ela tá bem depois daquela escada, só está esperando a gente voltar. É que o ônibus teve que vir aqui para abastecer. Mas ela tá bem ali, e aposto que está pensando em você!
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Um soluço seco.
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__ Ah! Eu também pus meu sapato assim no banco. É pra ele não cair, né?
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Silêncio.
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__ Olha que sacola maluca lá fora! Eu acho que ela quer subir a escada. Ah! Ela deve estar indo atrás da sua mãe!
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Ele se anima:
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__ Cadê?
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__ Ali, ó! Tá vendo? O vento bate nela e ela sai voando... é uma sacola louca, né? Eu acho que ela quer ir avisar a sua mãe que você está bem, porque ela deve estar preocupada.
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__ É mesmo. Olha, agora ela tá rodando pra lá. Por que ela roda?
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__ Por causa do vento. Igual quando a gente solta uma pipa. Você gosta de soltar pipa?
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Ele sorri:
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__ Só uma vez que meu pai me levou. Só que eu caí.
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__ É que tem que correr bastante e aí gente tropeça às vezes, né?
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Aproveito a trégua dos soluços:
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__ Como é o seu nome?
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__ Nicolas.
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O ônibus começa a funcionar:
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__ Agora, Nicolas, a gente vai dar a volta por ali pra buscar a sua mãe, tá? Não precisa se preocupar... tá vendo aquele outro ônibus? Então, a gente vai atrás dele, depois vira e aí é só a sua mãe subir.
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Os olhinhos dele atrás dos óculos – tão criança e já de óculos! – brilhavam, estava para lá de ansioso.
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Por fim, apareceu a mãe cheia de carinho, explicando tudo o que eu já havia dito.
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Minha conversa com Nicolas terminou aí, mas, desde esse momento, começou a me invadir um vazio enorme...
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Afinal, tudo na vida é mais difícil se não houver uma sacola ao vento.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

1 Comments:

  • At 7:51 PM, Blogger Rosely Zenker said…

    Hum... vc já viu beleza americana??
    Diz que o belo está mesmo em folhas e sacolas levadas pelo vento...

    Até eu agora quando olhar um saco voando vou me lembrar do nicolas...

     

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