Kianda

sábado, fevereiro 03, 2007

Luz e sombra

Os grandes olhos dela piscaram duas vezes quando ele pediu o número. Entendeu desentendida, sempre muito lenta para apanhar as entrelinhas do real. Dava-se melhor com os livros, o universo imaginário povoado de lagartixas que fogem em busca da cauda. Foi por isso que hesitou e mirou bem a cara dele:
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— Meu telefone? Você quer o número do meu telefone?
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Ele, entre sério e vexado, confirmou.
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Ela não tinha cartão. Ele deu um para ela, que anotou no verso a passagem para o pecado.
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Se ele se dotava de segundas intenções, ela não agia de modo diferente. Entre sustos e despertares, a volúpia do desejo se instalou de repente num meio sorriso. Nada mais havia a falar.
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— Ligo pra você no fim da tarde.
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No caminho, ela quis sonhar pássaros, mas eles se emaranhavam nas linhas da arapuca que o irmão armava quando pequeno. O telefone iria tocar... e então, o que fazer?
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— Oi. Estou no trânsito ainda, liga daqui a uma hora?
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Primeiro round: a desculpa. Talvez ele não retornasse e tudo estivesse, de fato, resolvido. A desculpa da desculpa como pretexto para um não. Mas ele era insistente:
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— Hummm... sabe o que é? Estou muito cansada hoje pra sair. Por que você não vem aqui?
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Segundo round: a desculpa! Se ele não aceitasse, a desculpa da desculpa da desculpa teria a culpa e pronto!, questão encerrada.
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No entanto, uma hora depois parava um carro na frente da casa e ele saltava com flores e vinho. Antes mesmo de cumprimentá-lo, ela pensou que se tratava de um profissional. Sorriu e, já com o vaso nas mãos, indicou o sofá. Sentaram-se. Pouca conversa, mal se conheciam. Entre "como está o seu país?" e "quanto tempo vai ficar no Brasil?", o silêncio. E do silêncio, o mote:
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— Às vezes, o silêncio é ensurdecedor.
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Ele escrevia; ela tentava.
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— Sabe que isso dá um verso?
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— É mesmo: "às vezes, o silêncio é ensurdecedor". Bonito o paradoxo.
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Olharam-se nos olhos. Que mais dizer, meu Deus? Sorriram. Ela sugeriu que abrissem o vinho. Procuraram as taças e o saca-rolha. Ela aprovou a habilidade dele. Era, realmente, escolado. Profissional.
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— Vamos brindar?
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— Vamos.
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— Ao no...o...ó...sso encontro!
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Tintins e quetais, ela percebeu que ele, de vez em quando, gaguejava. Quer dizer, quase gaguejava, se é que isso é possível. Sempre que o disco ameaçava enroscar, ele dava um tranco. O pescoço retesava e os olhos como que comprimiam o nariz, uma coisa bem esquisita. Ela quase riu, mas se controlou em tempo.
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Ele tirou o paletó, não sem antes pedir autorização. Ela pensou "pra que tanta frescura se você quer me levar pra cama?" e sorriu discreta e elegante:
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— Faz calor aqui.
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De novo se calaram e, de repente, uma mão grande, morna e macia tocou o braço dela, que deixou. Sorriram-se. "Às vezes, o silêncio é ensurdecedor".
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Os olhos se dilataram: um primeiro beijo. Outro. E outro. A dança das línguas, de quando em vez, era interrompida pela náusea. O gosto dele não era bom. Então ela pensou em pasta de dentes e balas de hortelã e penetrou-se. Com toda febre.
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Depois, acordou assustada com a luz do abajur projetando o gato na parede e se descobriu também sombra.
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***
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Ainda não sabe de quê, mas sombra.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

1 Comments:

  • At 12:08 PM, Blogger Sandra Falcone said…

    Caramba!


    Ainda bem que inventaram o blog senâo ficava tudo escondido ai, dentro dessa cabecinha maravilhosa.

    Parabéns , belissimo texto.

    Tia Sandra

     

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