Kianda

quinta-feira, março 15, 2007

Quaresmeiras

Elas não são como os ipês, que despejam tapetes. Tão donas de si que me vêm à memória os indicadores da velha para cima e para baixo: cada um é cada um. Pura verdade. E fico olhando o nada no meio daquela explosão de flores, como se assim, sorrindo para o vazio, encontrasse a resposta para tudo.

Quase invejei as quaresmeiras intactas, misturando roxos ao inesperado azul de março. Variei entre gente e bicho. A velha e seus dedinhos e a minha pequenez diante do mundo. Apanhei três florezinhas e guardei no meio de um livro. Um dia, irão parar nas mãos certas. Um dia, amém, essas mãos vão entender a extensão da ternura.

Às vezes, penso nas entrelinhas. E todas as perguntas que me faço no vazio se tornam cheias feito aquele ditado chinês do tambor. O caminho para casa é miniatura da vida: a gente nasce, cresce, envelhece e morre. Excesso de idéias dá nisso e a culpa é das quaresmeiras empetecadas.

Mas que lindas!


Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

quarta-feira, março 14, 2007

Cena urbana


A copeira do prédio ao lado,

de uniforme e penteado,

lava a louça em silêncio.


No gesto suspenso do lápis,

guardo o medo que a mantém

mês a mês, refém do salário.


Érica Antunes

terça-feira, março 13, 2007

A mulher e as pamonhas

Sempre que ela abria a janela da sala, via no mundo um grande formigueiro. As pessoas caminhavam de um lado para outro: iam a mulher e a bolsa, o menino e a mochila, o rapaz e a pasta. E ela sabia que, se ficasse ali, no mesmo lugar, horas depois estariam de volta: a mulher e a bolsa, o menino e a mochila, o rapaz e a pasta.
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Mas, naquele dia, ela foi contaminada pela febre do novo. Na esquina, apontou uma brasília e seu auto-falante:
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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Primeiro ela riu. Era coragem demais alguém sair numa brasília azul e barulhenta com um auto-falante que deformava a voz, em pleno sábado, no centro da cidade!
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Depois, sentiu uma mistura de piedade e inveja. O pamonheiro era um pobre, mas feliz. Não se escondia num personagem, era ele mesmo, sem vergonha, dono de uma brasília azul. Nem se importava com a voz deformada, queria era vender suas pamonhas e ganhar seu dinheirinho em paz.
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E, vendo a pequenez da criatura, tornou-se ela toda menor. Teve ganas de se bater, puxar-se pelos cabelos, beliscar-se, morder-se. Mas se conteve. Algo como "você precisa se aceitar" pulou lá do fundo do peito.
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Quem disse que ela não se aceitava? Claro que se aceitava, o caso não era esse e o "eu" lá de dentro entendia mesmo tudo errado! Havia uma grande diferença entre a autocrítica e o ódio. Ela estava apenas avaliando o que sentia, que idéia! Era a velha mania de emprestar adjetivos às pessoas que a incomodava. Pessoas deviam ser pessoas, vistas em sua plenitude. Essa história de "primeiras impressões" detonavam as possibilidades. Uma vez posta a tarja, para sempre a tarja. Mas e o pamonheiro? O que era ele, afinal de contas?
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Ela não sabia e o fato de não saber mexeu com todos os seus miolos. Para tudo sempre houve uma resposta na ponta da língua, como é que era possível, assim de repente, tudo ficar tão escuro, vago, distante? Era para rir ou chorar diante do pamonheiro? Ou o que ele provocava era pura indiferença?
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Não. Indiferença não era, ela estava condoída e alegre ao mesmo tempo, como é que podia? Como é que invejava um pobre coitado esgoelando no meio da rua num calhambeque daqueles?
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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Que coisa mais brega! Aquele vocativo no meio, aquela repetição, aquela exaltação a uma coisa tão boba feito uma pamonha, como ele tinha coragem?
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E que vontade era essa, tão repentina, que lhe surgira?
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Não se conteve. Abriu mais a janela e fez coro:
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Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
O gosto mais puro do milho verde.
Vem experimentar, minha senhora, é uma delícia!
Pamonhas, pamonhas, pamonhas!
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E, pela primeira vez na vida, sentiu-se plenamente feliz.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

segunda-feira, março 12, 2007

Cronotopo

Achar ninho de beija-flor
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é se tornar pai do destino
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e devorar, com toda a fome,
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do guarda-comida o pão-de-ló
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reservado pr'as visitas.
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Érica Antunes

domingo, março 11, 2007

Como doces na vitrine...

Eram como doces numa vitrine que eu, ávida menina de olhos brilhantes, queria devorar. Tortas de chocolate e trufas rejeitadas pelo mundo e postas ao acaso, à mercê da corrosão do tempo. Rostos interrogativos, confusos, cobertos de um glacê estagnado chamado velhice. Talvez não passassem de terra desidratada, vasos de argila prestes a se quebrar. Passos miúdos, bocas murchas de sorrisos sem dentes, gestos lentos. Se sofressem um só empurrãozinho, voariam para o solo e, incrível, do solo para o infinito.
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Não pude estabelecer contato. Não soube. À guisa da observação mantive minha atitude. E, de braços cruzados, reparei os pezinhos tão pequenos daquela que nunca mais sairá da cadeira, condenada à prisão de si mesma. Criança, criança que se encanta com o ninho na árvore! Era eu. Era ela. Éramos nós.
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E me peguei num pensamento solitário e tão penoso que remexe as vísceras, as vértebras, o sangue: ela me é. Daqui a muitos anos, talvez, mas me é. Ou o inverso, que o círculo operante e satisfativo é a determinação do ser e do não-ser, como se estivéssemos todos numa enorme roda-gigante de um gigantesco parque de diversões. Que tudo se transforma é fato, o segredo está na aceitação da inexistência da perda.
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Meu devaneio sabatino sugere um balanço de vida: mais ganhei ou mais perdi? Não posso responder o que não entendo. Meu limite se esmera ao som da gaita. Se se pensar em funcionalidade, é o que resta à figura arquejada, de olhos fundos e magra que se me impõe.
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Tenho olhos tão brilhantes e não consigo enxergar a beleza do mundo. Mas a ouço. E o vento morno da quase primavera se lança contra minha pele e me toma de uma sensação de nudez. De repente, não há mais doces na vitrine. Há peixes. Basta um salto para que me torne um deles. Depois de entrar, imagino que não queira sair. É o medo. Um dia, é certo, haverá rebelião. Os peixes, um a um, seguirão seu caminho para além dos limites do aquário. É a sina.
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Eles me incomodam. Creio que eu, do mesmo modo, incomode-os também. Não consigo achar graça na cena da senhora esclerosada paquerando o rapaz. Ela não sabe. Se bem que, talvez, eu também não saiba. O de chapéu apanha, às escondidas, um pedaço de bolo. "Velho safado!", ri-se a enfermeira enquanto o manda para fora. Bolo é ritual, é hora marcada, é festa. O que não vejo é a festa.
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Mas há vida e sou ávida em todos os sentidos, quero o deleite e também a fome. Como peixe ou doce, em aquário, vitrine ou vaso de barro...
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Érica Antunes

sábado, março 10, 2007

Êxodo


São três promessas em cena,
vitrines de tantas partidas.

Dela, o colo alimenta,
Dele, o ombro abriga,
a cria, o sonho, a fé, a família.

Entre as caixas e as trouxas,
nasce de terra um sapato:

Calça os pés e roça a vida.



Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

sexta-feira, março 09, 2007

O elixir

Se se pensasse em cinema, seria uma cena patética. Mas era a vida sendo apresentada como um ralo cheio de cabelos: asquerosa, dolorida e ricamente encenada.
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Tinha, a mulher, levantado cedo naquele dia. Correu a manhã toda compenetrada, trabalhando num xale de tricô. Não que fosse prendada – longe disso! -, é que, às vezes, dava-se o luxo de executar tarefas distantes do habitual manuseio do fogão.
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E tinha sardas, o que a diferenciava dos demais. Sardas que, à luz do sol, eriçavam-se em dança no rosto meio franzido já. Não, não era velha. Era, como dizer, envelhecida. Uma velhice que não se revela no corpo, escondida nas trevas da personalidade.

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Compunha, junto com a casa de duas janelas que davam para a rua, um papel um tanto vexatório. As raízes brancas tomavam vez nos cabelos escorridos e maltratados, como se camadas de banha tivessem, propositadamente, sido aplicadas.
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Horrenda compostura. De vez em quando os óculos paravam na ponta do nariz e o olhar ficava distante, perdido num pensamento qualquer. Depois, como se ela ouvisse estalos diante de si, largava, rapidamente, o tricô e arrumava a passadeira para disfarçar. Lembrava-se, então, de dar água para as milhares de samambaias que cultivava.
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O canecão vinha cheio, tão cheio que as mãos tremulavam com o peso. Um sentimento de ternura a dominava quando via a terra sorver o líquido vital. As filhinhas queridas cresciam e ficavam fortes que nem a mamãe!
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E se ainda não foi dito, diga-se agora: a mulher não tinha filhos. Não que não os quisesse, é que não se sentia suficientemente capaz de gerá-los. Havia dias, é certo, que passava o tempo todo emburrada, louca para ter nos braços uma pessoinha que lhe fosse inteiramente submissa. Sonhava com uma boca ávida de leite roçando-lhe o peito, os sorrisinhos de gratidão encantada e as descobertas de si mesma na cria. Era, afinal, mulher. E desejava.
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Assim como desejava que o marido, sempre tão sensato e discreto, tivesse um acesso de loucura e a carregasse à força para o mato. Tinha fantasias indescritíveis e, cheia de pudor, corava-se toda só de imaginar. Com aqueles braços, meu Deus!, que loucura! Ela, quase franzina, puxada pelos cabelos, feito no tempo das cavernas, e jogada com violência na cama. Depois, amada como fêmea no cio, cheia de gozo, inteiramente feliz. Satisfeita.
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Mas fazia tricô sentada no sofá de napa recém-reformado quando, do nada, ouviu um grito. E outro. E mais outro. Levou um susto e não resistiu, foi ver o que era. Abriu a janela que dava para a rua e, inesperadamente, ganhou um cuspe na cara.
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Mais que um cuspe, foi uma golfada de comida que se espalhou sobre a mulher, maculando-lhe, mais que o corpo, a alma. Inebriada de nojo, sem querer ver de onde vinha tal gesto, tirou a blusa e passou a se sacudir toda, num enorme desespero.
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Depois viu. Era uma cigana, dessas que lêem a sorte nas mãos:
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__ Gostou, madama?
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A mulher, sem entender, mais enojada ainda porque a boca da cigana guardava um dente de ouro, não respondeu, procurando, a todo custo, desvencilhar-se dos fiapos de salada verde que se lhe prendiam nos cabelos e na blusa.
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__ Gostou, madama?
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Por dentro, ela se remoía. Humilhada, acovardada, absolutamente sem ânimo para reagir. Queria, apenas, um banho quente, daqueles de deixar a pele vermelha, e o sono profundo. Sim, a morte. Era uma mulher burra, feia, que não conseguia nada no mundo, e não queria mais viver.
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__ Gostou, madama?
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Havia duas lagartixas presas no teto. Uma branca e outra preta, com a “barriguinha” cheia de mosquitos. Pois desejava, imensamente, ter forças para apanhar os dois bichos nojentos e, abrindo bem a boca daquela cigana imbecil que a enfrentava, fazê-la mastigar tudo com aquele dente de ouro ridículo que insistia em brilhar.
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Estava, entretanto, muito debilitada para reagir. Era tão submissa quanto o bebê que, de quando em vez, sonhava em seu peito. Fraca, insegura, totalmente perdida num mundo que não sabia ver nem sentir.
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Numa briga interna, queria voltar ao tricô, ao xale, à rega das samambaias e à vida besta e pobre que sempre teve. E não podia. Diante de si estava a cigana, gorda, de vestido de babados coloridos, lotada de pulseiras, estereotipada:
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__ Não vai dizer nada, não, madama?
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A mulher não respondia, limitava-se a olhar-se e a olhar a outra, comparando-se, enfraquecendo-se, submetendo-se ao mundo real.
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__ Cuspi, sim, e cuspo de novo. A senhora não merece vintém.
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Já não sabia mais se ouvia, de verdade, ou se tudo aquilo era fruto da sua imaginação doentia. Só podia sentir, doendo-se toda, como se cavasse a ferida zangada. Tirando a última gota de sangue das próprias carnes, quase se ajoelhou:
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__ O que foi que eu fiz?
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A cigana soltou uma gargalhada sonora, dessas que fazem tremer os cristais na prateleira e afugentam cães e gatos:
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__ E ainda tem coragem de perguntar?
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Agora já não queria mais nada. Chorava. Sem ânimo, mas fundamente, derramava-se. Era a água que irrigava a samambaia e só o que desejava era ser tragada pela terra. Morrer, que outro remédio que não morrer?
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__ Mas eu não fiz nada...
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__ Por isso!
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E a cigana, implacável, tomou o xale negro das mãos da outra e se enrolou, numa afronta.
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A mulher se revoltava, cada vez mais, contra si própria e contra sua incapacidade de se defender. Ia dos olhos risonhos ao dente brilhante da outra, idolatrando-a quase, tomando-a como parâmetro de ousadia extremada.
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Pela primeira vez na vida, teve um surto de memória: agarrou, com toda a força, a lagartixa preta que descia pela parede:
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__ Agora você me paga, desgraçada!
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... e a cigana ainda sorriu enquanto engolia a lagartixa. Depois, sumiu-se na rua.
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(...)
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Na moldura da janela, feito um quadro, restou só uma mulher e seu amargo gosto na boca.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

quinta-feira, março 08, 2007

Enchente

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(para E., depois de um pesadelo)
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..
O vento no galho
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derruba a esperança
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daquela
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que um dia
.
foi
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apenas
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nuvem...
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Érica Antunes

quarta-feira, março 07, 2007

Tio Juca

Quando meu irmão era pequeno, sofria nas mãos do tio Juca. Uma vez, os insultos viraram briga, que mamãe encontrou o caçulinha de quatro anos afogado com um cigarro de palha. Mau exemplo o tio Juca: prendia os rabos dos gatos, beliscava e mordia as crianças, falava palavrão e, crueldade das crueldades, queimava a pele dos meninos com a ponta do cigarro.
Lembro tão bem que íamos chegando e mamãe já avisava: "Não saiam de perto de mim!" Fora os puxões de cabelo -­ e eu tinha tantos cachos -­, tio Juca nunca fez nada comigo. Minto! Ele mordia meu braço e falava: "Olhaí uma tampinha de garrafa!" Mas só. Talvez porque eu fosse menina quieta e delicada, talvez porque abrisse a boca por qualquer coisa, talvez porque não arredasse mesmo pé do lado de mamãe, tamanho o medo.
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A maior vítima era sempre o meu irmão, uma peste por natureza, que nem ligava para os avisos e lá se ia, quintal a fora, subir nas árvores, ver o viveiro (tio Juca tinha uma enorme coleção de pintassilgos) e correr por entre o cafezal (dá pra acreditar que nem era o sítio, era só a casa da cidade?).

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Ontem foi domingo e fomos lá. A grade marrom e a cerca viva, o jardinzinho da entrada, a varanda cheia de cadeiras de descanso, a grama japonesa, as janelas, a garagem e os apetrechos dos sítios, a horta atrás da casa e até o pé de tangerina, tudo continua como antes.

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Tio Juca também está lá. Fortão ainda, com setenta e três anos e seu eterno cigarro de palha esquecido no canto da boca, lendo jornal às custas de um bom par de óculos, mas já não corre atrás dos netos e bisnetos para assustá-los.

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O tempo é implacável, penso. E estendo a mão num cumprimento, enquanto tio Juca, calmamente, retira os óculos com a outra mão e, como quem não acredita, franze a testa e fixa os olhos azuis já não tão brilhantes: "Como você tá feia, menina!" Ganho um puxão de cabelo.

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Logo, então, mudo de idéia: talvez o tempo não seja tão implacável assim. Mesmo que a terra engula todas as entranhas, sempre haverá alguém para contar um pouco da lenda chamada "tio Juca".
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

terça-feira, março 06, 2007

Vínico


Vira o copo
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e desperdiça
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a uva.

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Érica Antunes

segunda-feira, março 05, 2007

Obsessão

No fundo, uma queria se ver personagem da outra. Eram duas pombas soltas na praça, rodeando o primeiro aposentado para ganhar um pouco da quirera por ele guardada, caprichosamente, no bolso.

Uma escrevia. A outra, que lia, projetava-se na história.

Caminhavam juntas, de mãos dadas, pela estrada sem fim que levava a algum lugar que suspeitavam lugar nenhum. Estranhamente, não desistiam.

No meio do caminho, encontravam pedras. E Drummond sorria o mais terno sorriso de quem sabe bem o que se passa. Elas não. Não sabiam ou temiam que a verdade ofuscasse os verdes passos da madrugada.

Mal rompia a aurora, estavam as duas mendigando a quirera. O velho da praça, acostumado, tirava do bolso o milho e saciava a fome das duas.

Assim foi durante muito tempo.

Como, porém, tudo caminha para um fim, houve o dia em que o velho não mais apareceu. Ficaram, as duas, sedentas, esperando pela cota diária da ração. Nada.

Emagreceram. Minguaram. Sofreram. Apegaram-se mais.

Uma voltou a escrever. A outra, a ler. Mas ambas, num desatino quase perfeito, personificaram-se. Uma se tornou outra. A outra se tornou uma.

Olhavam-se no espelho e viam mais que de si mesmas.

Uniram-se. Ataram-se. Colaram-se. Exigiram-se. Quiseram-se.

O tempo passou e o velho da quirera ficou perdido numa história que só teve a graça de dar início a uma outra, para elas, muito mais bonita.

Bastaram-se.

Esqueceram-se do mundo.

Até que, um dia, as duas pombas morreram de fome.

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Érica Antunes

erica.antunes@gmail.com

domingo, março 04, 2007

Angular

Se a lápis penso
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a limpo passo
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um dia a infância
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no velho caderno
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de caligrafia.
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Érica Antunes

sábado, março 03, 2007

Esfíncter

Dera para gostar de palavras. "Esfíncter", a preferida. Sentido desinteressado, mas, de qualquer forma, atrelado. As pernas roxas e o gosto amargo na boca. Boca que beijava às escuras um indelével sapo. Sapo que era sapo mesmo. A transformação imposta às vértebras e o valor posto à mostra.
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Adquirira, há pouco tempo, o hábito de ouvir música erudita. Não conhecia quase nada, ainda nos primeiros passos. Mas se encantara com Offenbach e já o considerava, de boca cheia, o seu compositor predileto.

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Procurava uma epifania, qualquer coisa que lhe mudasse o destino: "Eu me sento porque meus joelhos dobram e porque tenho nádegas. Se não tivesse nádegas e joelhos, não sentaria."

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Maravilhava-se toda, como não havia percebido antes?
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Lentamente, porém, a euforia ia passando e o tédio a dominava...

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A noite fresca, a janela aberta e a cortina de renda em livres vôos.

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Cheiros de hortelã atravessando a imaginação.

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Irritava-se.

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Era um cachorro guiado pela coleira.

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

sexta-feira, março 02, 2007

Efemérides

Entre rusgas
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e rugas
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mora
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a fúria
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(in)contida
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dos afetos.
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Érica Antunes

quinta-feira, março 01, 2007

Som do sax

Tenho que parar com isso. Ouço essa música e me lembro de meu irmão tocando guitarra e, na falta do sax, fazendo o som com a boca. Ligo essa imagem a ele de uma tal forma que o vejo morto. E ele morto me traz saudade desse dia em que abominei a guitarra e me ri da imitação do sax. Sobe por mim uma dor tão funda, como se me atirassem todas as pedras que existem. Não consigo conter as lágrimas. Meu irmão é uma pessoa linda. E eu nunca antes vi isso. Meu irmão cresceu. Não é mais criança. Namora. Dirige. E eu penso que a vida passa tão rápido e nem me dou conta de tanta coisa que perco segundo após segundo. Ando com uma terrível impressão de que vou morrer a qualquer momento. É por isso que preciso olhar mais o céu escuro em noite de estrelas. Vejo a falta de dentes no homem rústico e tenho vontade de chorar. Quando choro meus olhos ficam quase verdes. Vejo o pedreiro no alto da obra, sem proteção, e tenho medo. Vou me afastando, como se com isso pudesse impedir qualquer fatalidade. Olho a rua quase deserta. Vejo ao longe a igreja iluminada. Um homem de gravata falando ao celular no edifício quase em frente. Depois desliga, apaga a luz e sai. E lá embaixo está o vira-latas gordo alimentado pela dona do restaurante. Olho a cidade numa intensa nostalgia. Noto as luzes num acende-apaga-apaga-acende. Vidas aqui. Ali. Acolá. Em todo lugar. De vez em quando uma morte, que a gente nunca acha que vai acontecer com a gente. E um nó na garganta. E a impossibilidade de falar uma só palavra. E a vontade imperativa de saltar de pára-quedas num grito maior. Triste. Muito triste. Mas sei. Só é preciso soltar o que prendi. Ouço e reouço essa música dezenas de vezes. Ela entra fininha, vai invadindo, vai tomando conta. Eu deixo. Porque sinto falta mesmo disso. Leio um livro. E aquele bolo de cenoura ficou muito gostoso, mas me causou uma grande azia. Hoje não tem espelho. Hoje o que eu sinto é muito mais fundo. E eu nem sei descrever o que é. É. E basta. Pena é o que é. Dos que estão por aí. Dos que entram numa "furada" sem saber por que motivo. Dos que lutam, lutam, lutam. De um sorriso desdentado. Da mulher de chinelo havaiana e cabelo lambido e camisa xadrez e saia comprida. Da senhorinha do "mio". Do horticultor encasacado num dia de sol. Do menino que passa descalço pela rua. Do casal de urubus na cobertura do prédio. Da magreza daquele velhinho. Do aposentado de bengala na Caixa Econômica. De uma velhice tão perto da morte. De um bebê que desponta pro mundo. De um doente que desce da ambulância. De um amigo acidentado. De gente que vegeta. Do bóia-fria no pau-de-arara e enxada no ombro. Da meninazinha malroupida. Tudo gira. Imagens vêm e vão. Tudo se funde, difunde, transforma. Mesmo a margarida no jardim carrega um peso maior. Não a cativaram, não cativou. Meu irmão chega da rua e vem até aqui. Ouve a música. Balança a cabeça. E sai. Nem imagina o que estou pensando...
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Imagem da margarida: http://www.flickr.com/photos/piacere/264593986/