Kianda

quarta-feira, janeiro 31, 2007

O segredo

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Uma noite bem escura,
Um poste assaz comprido,
Dois buracos redondos
E quatro olhinhos sorrindo!

Ana gosta de batata
Preparada pela tia:
"Super crocante por fora
E, por dentro, bem macia!"

Gabriel prefere a sopa
Se o cabelinho-de-anjo
For macarrão do fininho:
"De cabelo, tenho nojo!"

Eis uma simples receita
Que vale pra todo dia:
Basta estar com as crianças
Para esbanjar alegria!
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Crédito da imagem: Érica Antunes, "Espionagem", 2004.

terça-feira, janeiro 30, 2007

Uma sacola ao vento

Para o Nicolas, que talvez eu não volte a ver jamais...
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Uma sacola ao vento é, às vezes, o quanto basta para invadir a alma. Nicolas chorava. Acordou e se viu sozinho num ônibus enorme para os seus três ou quatro anos. Olha daqui, d’acolá e nada do rabo-de-cavalo aloirado da mãe. Sabe-se lá o que sentiu nessa hora, ali, no meio de tanta gente desconhecida e grande. Não sei, mas posso imaginar... entre um soluço e outro, Nicolas se afundava cada vez mais no banco, como se nele procurasse um útero qualquer, diminuto e desprotegido.
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Acordei com a fala mole de um senhor explicando ao garoto que a mãe já voltava, só tinha ido ao banheiro. Nicolas engolia a dor do abandono: seria verdade mesmo o que o homem dizia? Não, não era capaz de acreditar. Os fatos, quando se tem três ou quatro anos, falam mais alto que o pensamento: a mãe tinha ido embora para sempre, ele não tinha mais mãe. E, incrivelmente, soluçava contido, o que me causava uma certa aflição... então um garotinho dessa idade já precisa ativar os tais freios inibitórios? Esse mundo está mesmo perdido...
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Não agüentei mais:
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__ Oi! Você tá preocupado, né? Mas, olha, não precisa, porque a sua mãe só foi ali no banheiro e já volta. Ela não levou você porque você estava dormindo e ela não quis te acordar. Mas ela já volta, viu?
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Nicolas pôs os óculos:
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__ Hum?
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__ É, sim, ó. Ela tá bem depois daquela escada, só está esperando a gente voltar. É que o ônibus teve que vir aqui para abastecer. Mas ela tá bem ali, e aposto que está pensando em você!
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Um soluço seco.
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__ Ah! Eu também pus meu sapato assim no banco. É pra ele não cair, né?
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Silêncio.
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__ Olha que sacola maluca lá fora! Eu acho que ela quer subir a escada. Ah! Ela deve estar indo atrás da sua mãe!
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Ele se anima:
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__ Cadê?
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__ Ali, ó! Tá vendo? O vento bate nela e ela sai voando... é uma sacola louca, né? Eu acho que ela quer ir avisar a sua mãe que você está bem, porque ela deve estar preocupada.
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__ É mesmo. Olha, agora ela tá rodando pra lá. Por que ela roda?
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__ Por causa do vento. Igual quando a gente solta uma pipa. Você gosta de soltar pipa?
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Ele sorri:
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__ Só uma vez que meu pai me levou. Só que eu caí.
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__ É que tem que correr bastante e aí gente tropeça às vezes, né?
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Aproveito a trégua dos soluços:
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__ Como é o seu nome?
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__ Nicolas.
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O ônibus começa a funcionar:
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__ Agora, Nicolas, a gente vai dar a volta por ali pra buscar a sua mãe, tá? Não precisa se preocupar... tá vendo aquele outro ônibus? Então, a gente vai atrás dele, depois vira e aí é só a sua mãe subir.
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Os olhinhos dele atrás dos óculos – tão criança e já de óculos! – brilhavam, estava para lá de ansioso.
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Por fim, apareceu a mãe cheia de carinho, explicando tudo o que eu já havia dito.
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Minha conversa com Nicolas terminou aí, mas, desde esse momento, começou a me invadir um vazio enorme...
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Afinal, tudo na vida é mais difícil se não houver uma sacola ao vento.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

segunda-feira, janeiro 29, 2007

De nojos e despojos


A salada de lado e
os lábios de óleo
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ele-dela-lia:
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"Ei, mulher, fecha a boca,
sua comida tá me vendo!"
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Érica Antunes

domingo, janeiro 28, 2007

Foi-se o tempo do sorvete de groselha...

"As coisas estão diferentes"...

.Sempre que eu ouvia essa mesma fala da boca dos mais velhos, jurava que jamais seria idiota o suficiente para repeti-la. Acreditava, de coração, que as pessoas eram meio cobras que trocavam de pele e deixavam a antiga solta pelo meio do caminho para, um dia, muito tempo depois, tropeçarem nela num espanto: "nossa, mas como tudo mudou!"
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Para mim, nada nunca mudaria, o tempo era eterno e eu a menina que carregava, a duras penas, o cetro, o manto e a coroa: rainha de minhas vontades.

.Mas muita carga foi se acumulando com o correr dos anos e, hoje pela manhã, tive a grata surpresa de me encontrar justamente com aquilo que mais temia: a pele que, também, ainda que evitasse, deixei pelo caminho.

.Foi um grande susto parar em frente à vitrine e, em lugar das tendências da moda, enxergar algo que nunca antes havia visto. Foi o cartaz quem me chamou para dentro: uma menina de maria-chiquinhas, urso de pelúcia numa das mãos, fazendo pose para mostrar a botinha preta.

.Difícil explicar o que senti, mas era uma menina de maria-chiquinhas!, como um dia fui, como um dia, talvez, seja minha filha. Nem bonita era, mas me levou a um tempo que andava meio esquecido, o tempo do sorvete de groselha...

.Olhando para a menina e suas maria-chiquinhas, projetei-me nela e tentei imaginar o que pensa. Não pude. Pensando no que ela pensa, terminei mulher e não menina. Fui incapaz de analisá-la e construí sofismas tão variados enquanto a vitrine crescia sobre meus olhos. Era como se a garotinha do cartaz criasse vida e me convidasse para um sorvete de groselha...

.Quando eu tinha a idade dela, uns cinco ou seis anos, não mais, ficava atarantada ao ouvir a buzina do sorveteiro há quilômetros de distância. Hoje o que me distancia é o tempo e, ao contrário do meu tempo de menina, às vezes peço que o sorveteiro nunca chegue. Nem saio mais correndo e gritando pela casa a fora:

.__ Manhêêêê, posso comprar um sorvete de groselha?

.Às vezes ela deixava, noutras eu ainda levava bronca porque estava resfriada. Em dias assim, só me restava sonhar com o delicioso picolé de gelo e "Q-suco". O tal do "Q-suco" dava uma enorme dor de barriga, mas nem por isso eu desistia, ainda mais porque se tratava de um sorvete de groselha!

.Mas acho que a menina do cartaz nunca experimentou um. Os tempos são outros e acaricio minha pele de cobra, meu único tesouro até há pouco jogado num caminho frio e noturno.

.Queria pintar um sol do amarelo de Van Gogh para mostrar a ela o quanto o mundo pode ser bonito. Tão criança e ainda nem aprendeu o que é groselha... deve até perguntar à mãe: "é de vestir?"

.Pobre menina a das maria-chiquinhas que, no futuro, procurará o passado e nenhuma pele encontrará, perdida num presente amnésico. Pena que não saiba o quanto está perdendo...

.É, as coisas estão mesmo diferentes...

.Vim para casa pensando: nem sorvetes de groselha existem mais...

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

sábado, janeiro 27, 2007

Purgatório

Sobram anéis
e nenhum sinal
de passagem

L I V R E


Érica Antunes

sexta-feira, janeiro 26, 2007

O sino

"Toda cidade devia ter um sino"...
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Esse primeiro pensamento a fez interromper todas as atividades e se indagar: "Era normal?"
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Metódica, sim, mas farta de espelho, carecia de um reflexo prolixo de retoque carnal e febril de desejos. Era uma rainha hilsteana cambaleando bêbada para o leito conjugal, dona de partes e pêlos úmidos, carnes intumescidas, boca ardente e pernas lânguidas.
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Fátima quis o sino e não o sono. Um sino grande, de badalo intenso, a dobrar no alto da torre da catedral duas vezes por dia. Duas vezes! Estava enamorada, coberta pelo grito estridente do gozo maior. Sino fálico.

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Quando estivesse no alto da torre, estenderia as tranças para o passante príncipe, imitando a santa homônima, ávida por orações. O ardor, porém, seria concupiscente, herético.
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Até o cheiro metálico, o tato gélido, o gosto hirto se perderiam na ânsia de Fátima. Afinal, seria o homem que, em decúbito ventral, dela faria fêmea, louca e santa.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da imagem:
http://www.flickr.com/photos/claudio_mg/150102447/

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Bucólica

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Café coado na hora:
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Cheiro que não escapa
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De outros cheiros da terra.
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Érica Antunes
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quarta-feira, janeiro 24, 2007

Os frangos de Dona Rosane

... porque quando somos crianças tudo é correto, tudo é feliz. Ainda me lembro de uma velhinha que criava frangos para vender numa pequenina cidade do interior:
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Era franzina e usava óculos. Escondia os anos vividos sob um lencinho alaranjado, cheio de florinhas azuis, presos com ramonas nos cabelos brancos. Usava sempre vestidos (desses que as senhoras de bastante idade gostam) ou saias que deixavam à mostra a barra da anágua. As pernas, ou o que se via delas, eram cobertas por varizes roxas e azuis, todas grossas. Nos pés, sandálias. Meu pai dizia que Dona Rosane parecia uma bruxa, só faltava a verruga na ponta do nariz.

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Morava com uma neta, que cuidava da limpeza. Um pecado, porque a menina sofria nas mãos da outra. A casa era muito antiga e pintada de verde-água, só a pequena área da porta da entrada era rosa. Eu tinha medo de andar pela casa porque o assoalho fazia "toc, toc" e eu pensava que podia desmoronar e então eu cairia bem em cima dos frangos, que ficavam em repartições organizadas pela própria Dona Rosane, debaixo da casa.

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Os móveis eram extremamente modestos e os colchões de mola faziam barulho quando sentávamos, Eliane e eu, para trocar as figurinhas que vinham nas gomas de mascar. Banheiro não havia e, para o banho, cada uma se encarregava de puxar água do poço e encher a própria bacia. No frio, a água era aquecida num enorme caldeirão de alumínio.

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Lavavam a roupa num tanque improvisado ao lado do poço. Enormes varais eram preenchidos pelas peças humildes de toda a vizinhança.

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As galinhas e os frangos ciscavam no quintal emitindo o seu "có, có" que me divertia. Procuravam minhocas e eu sentia nojo só de imaginar aquela coisa toda mole na boca, ou melhor, no bico daqueles coitados.

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Um cachorro magro e pulguento sempre nos enredava as pernas e quando, disfarçadamente, eu o mandava embora, ele mirava meus olhos e pedia: "Deixa eu ficar aqui, eu não estou fazendo nada". Como se me arrependesse, acreditando na piedade do cachorro, não mais insistia para que largasse meus pés.

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Eu gostava de ver Dona Rosane matar os frangos. Eles se batiam, as asas pra lá e pra cá, o pescoço molenga, os pés agitados. Depois chegava a água quente, o mergulho dos cadáveres nela, o arrancar das penas. Mamãe sempre encomendava frangos: "Olhe, Dona Rosane, eu quero um bem grandão. Aquele ali." E indicava o escolhido, que parecia adivinhar que seria o próximo sacrificado.

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A hora mais divertida era a de agarrar os frangos, porque eles eram muito ágeis e corriam demais para as pernas de Dona Rosane. Ela, então, encurralava-os e com "mãos-de-gato" segurava-os pelos pés.

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Era engraçado como uma senhora evangélica, devota do Senhor Jesus, tivesse tamanha habilidade e destreza com a faca. Eu ficava esperando o seu sorrisinho disfarçado quando cortava pela metade a sua vítima, estralando-lhe os frágeis ossinhos. Nesta etapa, eu imaginava se ela não era, de fato, uma bruxa.

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Depois de bem picado, embalava o frango num saco plástico de açúcar cristal ou de arroz e prendia-lhe a boca com uma tira de tecido. O freguês chegava e ela entregava o pacote... a vítima.

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De vez em quando mamãe reclamava que o frango devia ser velho, porque não queria cozinhar direito, estava duro. Mas nunca disse nada à vendedora e sempre fazia questão de escolher, ela mesma, o seu frango. Pedia-me para vigiar se a velha matava mesmo o que ela escolhia. Dona Rosane sempre cumpria a ordem, mas mamãe sempre dizia que eram frangos velhos. Só em casa, porém.

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É interessante quando lembro deste passado já remoto, em como me divertia com a cena dos frangos, da vida daquela gente.

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Acho que minha visão, hoje, seria diferente: a Dona Rosane seria uma pobre mulher que batalha para sobreviver; os frangos, nada além de mercadorias; o cachorro, um animal de estimação imundo; a neta, uma desgraçada pela vida, e por aí a fora.

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Quando crianças, a rotina nos parece uma lenda, repleta de novidades, de invenções, de bondade. Um pequeno acontecimento pode nos marcar para sempre.

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Mas a criança é sábia. O adulto, mero discípulo espectador.

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fontes das imagens:
http://www.flickr.com/photo_zoom.gne?id=366242528&size=o
http://www.flickr.com/photos/christinalutze/98050387/

terça-feira, janeiro 23, 2007

O pulo do amante

Jean-Antoine Gros, "Sapho à Leucade".
Óleo s/ tela 118 x 95 cm.

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Uma dor grande, bem grande,
chega com uma música antiga

e um bilhete qualquer.
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Entra devagarinho,
depois vai se apossando

de todas as minhas vontades.
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Pulei o abismo, mas

quem disse que Safo tinha razão?
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Já não existo.
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segunda-feira, janeiro 22, 2007

O caderno de capa verde

A capa era verde. Quero dizer, verde só no verso. Na frente, havia uma estampa que me fazia sonhar horas a fio. Eu ficava olhando para aquelas pessoinhas encasacadas esquiando na neve fofa e branca tão longe da minha realidade e pensava que, afinal, devia ser bem gostoso andar de trenó...
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Era um caderno muito antigo para os meus seis anos; as folhas já meio amareladas, algumas páginas borradas... água, lágrimas, o quê? Enamorei-me dele. Tanta gente velha que nem mais existia tinha escrito ali... a primeira constatação filosófica que fiz foi: perde-se.
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Havia letras bonitas, redondas, grandes, essas me fascinavam tanto que eu tinha vontade de lamber as páginas. Outras eram inclinadas ("tortinhas!"), pequeninas, difíceis demais para mim. Quantos segredos guardariam?
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Era mesmo assim, um viver misterioso e intrigante. Quanta força para ler apenas uma frase que, lembro bem, nem gostei: "Se a vida oferecer um limão, faça dela uma limonada." Eu não tinha senso crítico ainda, mas sentia que isso era uma grande bobagem.
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Em compensação, aqueles versinhos de um tal Antônio em letras de forma cheias de personalidade – um dia eu ainda ia escrever daquele jeito, esperassem pra ver! – nunca mais se apagaram. Não me lembro de tudo, mas uma parte era assim:
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"Certa moça, a confidente
dizia isso baixinho:
– Se beijo gostasse da gente,
eu era nega um tiquinho!”
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Sei que são versos bobocas e sem valor literário, mas a rima, a sonoridade e o "tiquinho" me deixavam meio boba, olhando para o vazio, buscando uma coisa que eu nem sonhava chamar de "poesia".
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Um dia, eu tinha acabado de sair de uma caxumba complicada, ganhei um estojo de canetinhas. O sonho de toda criança, na época, era um estojo daqueles, lotado de canetinhas de todas as cores, tão raras e caras! Foi um presente, pois, que me deixou completamente feliz. Era inverno, minha mãe fazia tricô na sala e meu irmão dormia tranqüilo no berço. Um silêncio ensurdecedor. Então, fui para o quarto e me sentei no chão, ao pé da cama. Abri o caderno e, arrebatada, saquei das canetinhas e desenhei, de todas as cores, casas, nuvens, árvores, flores e corações. Num deles, vermelho, lia-se: "Mãe voss..." Era para ser: "Mãe, você gosta de mim?", mas a dúvida: "você é com 'c' ou com 'dois esses'?" me fez parar no meio.
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(...)
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Durante muito tempo a metade de um coração vermelho permaneceu lá, numa página amarelada, nas entrelinhas de outras declarações de outras tantas pessoas que eu não conhecia... até que um dia se perdeu na churrasqueira, queimado com o caderno de capa verde – verde só no verso – que eu tanto amava.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da primeira imagem: http://www.flickr.com/photos/afotografia/183355521/

domingo, janeiro 21, 2007

Vício


Um bêbado cai na calçada
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e a menina que com a mãe passa
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descobre que o urso que abraça
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é uma garrafa de pinga.
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Érica Antunes
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sábado, janeiro 20, 2007

Num cemitério


Depois de horas inteiras, dois olhinhos estreitos saem do devaneio manual e agulha e linha saltam para a sacola. Os dedos doem, as costas gemem, as pernas reclamam.
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Ela passa o tempo todo ali, quieta, distante, sozinha, no banco sob a árvore, fazendo crochê e resguardando a vida.
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Quando a noite escurece a vista, volta para casa. Só então abre a campa e hermetiza o sono dos justos.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Infância pobre

Vincent van Gogh, "Starry night". Óleo s/ tela, 73 x 92 cm, 1889.
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O céu da boca
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é uma noite
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estrelada de cáries.
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Érica Antunes

quinta-feira, janeiro 18, 2007

A casa da Dona Maria

A casa da Dona Maria é o que de mais nítido guardo da minha primeira infância. Ficava na esquina, as portas e janelas davam para a rua, era branca pintada a cal, antiga, com dois pisos.
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Na sala, havia grandes sofás de mola cobertos com xales e, pelos cantos, vasos, muitos vasos. O corredor comprido e atapetado dava para a escada de corrimão vazado e, logo em seguida, para os quartos de cama, criado-mudo, armário e imagens de santos. Mas o que mais me intrigava era o enorme relógio e seu badalo repetitivo e nostálgico. Tempo eterno: eu crescia, Dona Maria enrugava. Esse relógio nunca parou!
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Tão estranho pensar assim quando se tem menos de três anos de idade! Desde esse tempo aprendi a não subestimar uma criança. Palavras que são ditas ao acaso podem ser lembradas para sempre. Eu mesma, uma vez, cometi o enorme despropósito de brincar com minha prima menor: "Eu adoro sangue! Quero jantar uma boa sopa de sangue!" Até hoje, quando nos encontramos, ela vem repetindo essa idiotice dita para assustar... e assustou, mais que a ela, a mim mesma.
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Mas nem era isso que estava falando, lembrava da casa da Dona Maria... Ah, essa casa tem mesmo um significado todo especial: meu cordão umbilical foi enterrado lá, ao pé de uma roseira branca no fundo do quintal, à porta da cozinha.

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A casa de Dona Maria e o meu umbigo. Sinto mesmo uma forte ligação, ainda posso ver a cortininha verde da cozinha balançando, a pia de pedra carcomida com duas portas de madeira e quatro gavetas, as violetas na prateleira azul. Ah, meu Deus, será que ainda existe esse lugar?
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O tempo passou e se Dona Maria ainda estiver viva deve estar muito debilitada. Ah, tempo, tempo, para onde levou minha infância? Pago o resgate para tê-la de volta, para poder sentir o cheiro das rosquinhas douradas recém saídas do forno de barro... lá estava Dona Maria com um avental xadrez e um guardanapo no ombro, sempre, todo o dia. A testa suada, de vez em quando enxugava o rosto com o guardanapo, os mesmos vestidos de todo santo dia, o mesmo cabelinho grisalho na altura do pescoço preso com grampos.
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Minha mãe chegava e me punha no chão, mostrava a roseira e meu umbigo, eu nem entendia nada, via as rosas brancas e sorria. Via tanto que guardei essa imagem comigo até hoje. Depois, Dona Maria me pegava no colo, penteava meus cachos, mostrava o gato e oferecia biscoitos. Naquela mesma cadeira de palha, ah, meu Deus!

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Era uma casa e seu segredo. Um segredo guardado no grande relógio de parede, na pia da cozinha, na roseira-dona-do-meu-umbigo, no forno de barro, na porta da sala. Um segredo chamado "vida".

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Ah, saudades, meu Deus!

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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Crédito da imagem: Érica Antunes, "Uma casa em Taubaté", 2005.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Vide-Bula


Nunca acreditei
no amor dose-única,
comprado em botica,
farmácia com ph.
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Amor, para mim,
é um beija-flor
de bico-mezinha...
En-Cantando gotas.
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terça-feira, janeiro 16, 2007

Doce de abóbora

- Tem doce de abóbora com coco, fiz nessa semana, quer?
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Como já havia recusado a massa de pão frita e o café, resolvi ser gentil:

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- Hummmm! Adoro doce de abóbora!
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Apareceu a vasilha plástica de tampa suarenta da geladeira:
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- Vê se gosta...
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Despejou uma tantada numa xícara de chá com uns ramadinhos pintados, trincada, daquelas bem antigas e humildes, e me entregou uma colher:
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- Pega essa de cabo meio torto mesmo, o que vale é o conteúdo! -­ vi o sorriso branco da dentadura.
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- Claro, quem liga para essas coisas?
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Sentei na mesma mesa que sempre vi no mesmo lugar desde que me conheço por gente: as tábuas meio envergadas pelo correr do tempo, algumas inscrições produzidas pelas pontas das facas logo depois de chupar as laranjas e fazer das cascas bichos horríveis, flores do jardim, secretos duendes.
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Apanhei a xícara e, enquanto pus a primeira colherada na boca, pensei se, de fato, o tempo existe. Tudo num átimo, naquela mesma cozinha e seu mistério guardado em prateleiras azuis e panelas penduradas. Onde ficariam as tampas?
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- Está uma delícia o doce... -­ disse sem sequer ter prestado atenção ao gosto.
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- Gostou mesmo? Pois sabe que foi açúcar que dava pra fazer seis cafés?
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Miséria, concluí. A que ponto chega o humano: medir a quantidade de açúcar e compará-la a míseros bules de café...
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Ainda vi o vermicida enfiado na greta entre a parede e o teto. Por ali deveriam entrar ratos... ou não?
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- Açúcar demais, hein? ­- menti calculando a irrisoriedade do que minha tia considerava um disparate.
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O açúcar devia ser do tipo "cristal", daqueles comprados no armazém ou embalados em grossos pacotes de papel que eu mal agüentava carregar no alto dos meus cinco ou seis anos de idade.
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- Pois então, menina, e o preço tá pela hora da morte. O governo diz que não tem inflação, mas como, se a gente nem compra mais nada com a aposentadoria?
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A réstia de alho presa num grande prego e o varal de lingüiças, bem perto do fogão à lenha, me olhavam com cara de poucos amigos. Quanto devia custar um pacote de açúcar "cristal"? Fiz as contas de quantos quilos cabiam no orçamento do mês daquela pobre coitada.
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- Está tudo tão difícil, não, tia?
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A gata, deitada num velho cesto de vime, dava de mamar aos filhotes.
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- Se tá. Esses políticos só aumentam os deles e pro povo só dão banana.
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Banana é mais barato que açúcar? Perdida de mim, estranhei: de que banana ela falava, afinal?
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Minha tia estava regredindo, era visível. Tornava-se apenas mais uma aposentada que saía do banco e deixava o parco dinheirinho na farmácia:
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- Sabe que o médico disse que tô "osteoporose"?
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- Verdade? -­ disse abrindo os olhos num susto enquanto pensava na lexicografia da moléstia.
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- Verdade. Agora não posso mais ajudar seu tio na colheita. Tô proibida, na "forga".
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O tio também envelhecera. Sentado na varanda, passava os dias cachimbando. Ainda usava chapéu e calçava botinas. Fiapos de história reunidos nos poucos cabelos restantes, tão finos e brancos como seda recém-saída do casulo.
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- Mas a senhora precisa descansar um pouco, tia, já trabalhou muito.
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Era uma escrava lembrada pelos "Demônios da Garoa" numa música tão popular. Mal se levantava e o tanque se fazia gigante, encarando-a com desdém. O ferro em brasas, pesado, e as roupas que não acabavam nunca.
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Olhou pela janela, como se visse o nada:
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- É, fia, mas quem é pobre e não nasceu em berço de ouro, só descansa quando junta os pés no caixão.
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Senti um frio na espinha e de novo a enxerguei velha e carcomida. Naquele canto da cozinha antigamente ficava um balaio, cadê ele?
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Eu me enganava tentando desviar minha própria atenção, mas sabia que o inevitável seria mencionado mais uma vez:
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- Você, que é estudada e sabe das coisas, tem que lutar pra não lavar cueca de marido.
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Ah!, meus sais!
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- Tia!
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- É isso mesmo. Olha pra mim: velha, feia e sem um tostão furado. Se não agüentar as bebedeiras do seu tio, morro de fome e de vergonha, que no meu tempo mulher casava pra vida inteira...
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Pronto. Chegáramos no grande tema de novo. O mundo dava cambalhotas e a cena era sempre a mesma: minha tia em pé, as mãos na cintura, os olhos meio fechadinhos, metida num vestido de sarja, contando as barbaridades a que era submetida:
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- Pois que ele chegou outro dia e jogou o prato longe, dizendo que aquilo era comida de cão e não de gente. E mais tarde quis me bater porque a calça ficou com dois vincos. Já cansei de pedir um ferro elétrico, mas ele não dá.
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Eu podia aconselhar ou consolar, mas em respeito a mim mesma, mantive um silêncio sepulcral.
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Terminei o doce com um nó na garganta, como se colaborasse para as despesas por ter ingerido aquela xícara de tanto açúcar, açúcar para seis cafés!
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- Estava uma delícia.
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Levantei para lavar a xícara e a louça que se acumulava sobre a pia. Ela usava sabão de soda ainda! Pude vê-la tal qual sempre vi quando criança: a pá de madeira na mão, mexendo o imenso tacho de ferro borbulhante do calor da fogueira. Ouvi nitidamente o "Não chega muito perto que é perigoso espirrar em você" e todo o suor escorrendo de sua testa.
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- Não precisa lavar, fia, deixa aí que mais tarde eu lavo.
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Deixar? Jamais!
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... em seguida, quando a mistura estava no ponto, minha tia despejava o sabão numa forma de madeira e deixava tudo intocado por dias e dias, até que a consistência necessária fosse obtida. Era uma alegria essa fase, eu podia ajudar riscando com um graveto o lugar do corte. Surgiam, então, as barras quadradas que logo eram dispostas numa tábua comprida que depois era levada ao alto.
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- Que é isso, lavo num instantinho! Gosto de lavar louça, sabia?
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Mentira pura, mas quem é que não fala coisas que soam bem ao interlocutor? Eu estava no universo dela e só me restava essa gentileza.
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- Fia, assim você estraga as unhas.
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De fato, o esmalte das unhas descascaria. Mas o tempo também descasca os objetos e as pessoas, bastava olhar para minha tia e seu rosto enrugado de sofrimento. A diferença é que no dia seguinte eu podia pintar minhas unhas de novo da cor que desejasse: vermelhas, rosas, douradas, azuis.
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... minha tia já não tinha unhas, tinha o passado tão remoto que chegava a doer.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Crédito da imagem:
Lucia Lay Maxson, "Old woman at table". Óleo s/ tela 66 x 43,1 cm, 1950 (?).
Fonte: http://members.iglou.com/maxson/Painting/Lucia/OldWomanTable.html

segunda-feira, janeiro 15, 2007

O bigode do meu pai

Joseph Bau, "A coupling". Óleo s/ tela 47 x 32 cm.
Meu pai era feio,
Feio e tão magro...
Carinha de menino.
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Quando criou pêlos na cara,
Namorou minha mãe.
... tão bonita ela!
Noivou,
Casou.
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“... mas na Quaresma, meu Deus?!”
“... será que ela está grávida?”
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Não, era moça direita.
Casou virgem, sim senhor...
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De lá pra cá restou a foto:
Só vejo o bigode!
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Érica Antunes
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domingo, janeiro 14, 2007

Um dia também serei...

Eu era a quadragésima segunda dos quarenta e seis netos. Naquela época, minha avó tinha cabelos bem compridos, tão finos e branquinhos. Ainda posso vê-la se olhando no espelho. Primeiro passava o indispensável pó-de-arroz, depois o perfume meio adocicado que eu nem gostava muito.
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Eu sentava atrás dela, na beirada da cama, e via o pente de madeira deslizar pelos cabelos até chegar às pontas, quando os fios se abriam num sorriso. Desembaraçados, vovó punha as mãos para trás e ia torcendo, torcendo e, de repente, surgia um coque grande e branco. Nessa hora eu ajudava segurando os grampos que ela ia anexando, um a um, até sentir bem preso o penteado.

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Ah! Que saudade da vovó e seus eternos tamancos "anabela", vestidos sóbrios e mãos pintadinhas de velhice!
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Um dia, era domingo e lembro bem, ela estava no quarto se preparando para sair. Abri a porta devagar e a vi nua, prendendo o espartilho. Ela não me viu e me afastei para que não pudesse mesmo ter idéia de que eu estava ali. Minha avó era feia, descobri, e tinha a pele enrugada.
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Até hoje sinto embargar a garganta. Todo o mundo dizia que eu era muito chorona e vivia no colo, mas ninguém tinha visto vovó assim tão velha e eu sabia que ela ia morrer logo.


Não foi tão logo, viveu dez anos depois da cena. Mentira, viveu mais cinco, que depois a paralisia só a fez sobreviver. Nos últimos tempos, então, esteve condenada a uma cama e seu alimento era soro.
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Sinto saudade... mas queria minha avó de antes, fazendo pães e nhoque de batata, manteiga de litro e manjares para sobremesa. Queria aquela vovó que dava dinheiro para comprar doce, que me pegava no colo e contava histórias, que queria trocar os cabelos lisos por meus cachos... e eu respondia que daria só se ela me desse os olhos, azuis fundos, lindos.

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Hoje a vejo nas fotografias e no pensamento. Às vezes vou ao cemitério, paro em frente ao túmulo e me ponho a rir: "O que estou fazendo aqui? Vovó foi devorada pelas oito turmas já, vovó hoje são ossos."

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... acendo uma vela e me consolo: um dia também serei.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Crédito da imagem: Otto Dix, "Old woman, seated". 57,6 x 46,8 cm, 1932.
Fonte: http://search.famsf.org:8080/view.shtml?record=7766&=list&=1&=&=And

sábado, janeiro 13, 2007

Tanto ciúme

Fred Mandell, "Fenway". Bico-de-pena 27,9 x 38,1 cm, 2002.
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Farta da rima pobre
dos cabelos descoloridos,
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comprou
um bico-de-pena
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e tingiu de nanquim
a VIDA.
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Érica Antunes

sexta-feira, janeiro 12, 2007

O amigo do Pinochet

Foi durante o jantar, no dia da morte do Pinochet:

- Sabem quem morreu hoje? O Pinochet. Deu no jornal...

Um dos convidados:

- Morreu?!

E a nova namorada dele, toda solícita:

- Era seu amigo, Odair?


Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Três instantes mínimos

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No casamento, com o saco de arroz, o de feijão e o de farinha, seguiu a lata de banha.
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Durou um ano inteiro e o pai do noivo, muito entusiasmado, orgulhou-se:
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– A Aparecida é bem segura!

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Hoje fez frio e calcei uns chinelos pretos, em couro, com meias brancas.
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Ficou horrível.
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Vi, neles, os pés da minha avó.


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Anteontem, ela recebeu a aposentadoria e comprou um bolo de fubá.
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Comeu inteiro, sozinha.
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Era um "bolo exclusivo"!


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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Quase Cinderela

Matava o amor aos pouquinhos. Talvez morresse por ele, que matá-lo era sempre se deixar morrer. Havia uma necessidade de auto-proteção, como se, de um momento para o outro, fosse um caramujo todo mole saído da casca e procurando abrigo na caixa de fósforo. Nojo de si mesma por não ter tido coragem de dizer o que ia por dentro. Não suportava cobranças externas, as próprias já eram demasiado grandes. Temia o claro e adorava a penumbra. Às vezes, no meio da noite, procurava a lua. Gostava da solidão. Detestava que soubessem tudo o que pensava. Odiava ser perseguida em todas as direções. Não servia para ídolo. Preferia a beleza do anonimato e a certeza de não ser invadida no âmago. Andava sufocada. E se pegava pensando que não deveria ser assim. E era. Não desprezava o amor. Mas se sentia sem poder respirar. Não gostava de prestar contas. Não buscava um par de algemas. Chorou muito. Muito mesmo. Doeu. Ouviu o que jamais ouviria apenas por medo de se perder de si. Mas não havia espelho. Era única. Só. Própria. Não queria ser a sombra. Tampouco desejava outra atrás de si. Cansada. Desde aquela noite, matava o amor aos pouquinhos. Sempre tendo que pedir desculpas. Não era vítima. Pelo contrário. Mas enjoara de ceder sempre. E sempre a mesma tecla. E sempre procurando fazer das tripas coração para agradar. Não ganhava nada com isso. A não ser o nojo de si mesma. Lesma fora da casca. Asquerosa e indecente. Não podia aceitar que a razão sempre estivesse do outro lado. Cada um tem sua própria verdade. A dela era não se anular mais. Estava na frente. Em primeiro lugar. Cansada de dar passagem. Queria esfriar. Congelar. Matar. Mesmo que tivesse que morrer aos poucos também. Não importava mais. Não fazia sentido. Perdera a graça. Não queria mais discutir nada. Queria o espaço. Reivindicava o mundo. Ordenava o silêncio. Executava a sentença de morte de um amor obsessivo. "Libertas quae sera tamem". Não podia mais. E se fosse mesmo importante, pediria desculpas pela derradeira vez. Mas sairia pela porta da frente. Com todo gosto. Não queria a pena. Queria a autonomia. O grande gesto de se olhar dentro dos olhos na frente do espelho. Plena. Inteira. Solitária. Gostava de ter orgulho de si. Nunca teve ciúme. Nem por isso aceitou os fatos. "Há algo de podre no Reino da Dinamarca". As bruxas morreram na fogueira. Matou todas. Está de bem consigo. Resgatou-se nas profundezas do inferno. Saiu quase ilesa. Tudo por um triz, mais uma vez constatou. Apenas a ponta de um dedo ferida. Flecha que não quedou o coração.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

terça-feira, janeiro 09, 2007

Varal

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Como quem planta a vida
ao pé de uma árvore,
as roupas brancas
dadas ao sol
albergam de fé
o futuro que há.
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Érica Antunes
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Créditos da foto: Érica Antunes, "Varal", 2004.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

De braços dados num vôo de pássaro

Anita Malfatti, "A boba". Óleo s/ tela 61 x 50,6 cm, 1915/1916.
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... e então vejo a moça com problemas mentais de braços dados com a mãe piscar três vezes. Voluntária ou involuntariamente? A razão dessa idéia me perturba e a saia verde de pregas briga com o rosa da camisa de cambraia fora de moda. Não resisto e encaro, “Narciso acha feio o que não é espelho”...
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Isso foi o que escrevi num pedaço de papel quando o ônibus estacionou numa das suas oitocentas mil paradas. Havia, de fato, duas tristes figuras lá (é certo, o “tristes” fica por minha conta, que costumo dramatizar tudo), uma conduzindo a outra pelo braço. Deduzi logo: mãe gorda e cansada, filha magra e lesa.
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E foram os olhos da moça que me seduziram. Ela era guiada e guiava a si mesma com aquele jeito de ver o nada, de fugir do mundo, de escapar de outros olhos que não os dela própria. Três vezes seguidas piscou e enxerguei sua rotina pública de secretos desejos. Ou não?
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O ônibus arrancou e sonhei vôo de pássaro. Nele, alguém dizia que a liberdade de escolha é também não escolher...
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Érica Antunes
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domingo, janeiro 07, 2007

Xeque-Mate

Albino Moura, "O jogo". Óleo s/ tela 105 x 130cm, 2003.
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Toda história começa com um personagem ausente. Aos poucos, ele vai tomando corpo, ganhando forma e, sem muito esforço, sai do papel como quem passeia por entre as flores do jardim. Não é metalinguagem. O túmulo brota dentro da gente antes do tempo e frutifica num susto suspenso pelo fio. Enquanto o sólido se desmancha no ar, carboniferamente, numa paródia muito mal feita e mais ainda dolorida, insiste uma coisa-sem-nome-que-se-diz-coração em pulsar no peito com uma insistência corrosiva que morde os vermes com a mesma boca com que os beija. Descobrir-se fantoche da própria criatura é quase se tornar criança diante do ovo quebrado pelas asas de um passarinho que, pelado e desprotegido, espanta por ter mais força do que supúnhamos. O "nada" é paradoxal e a epígrafe também consolida a sentença de quem não morre por fora e diz tanto por dentro.
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Essa história - que nem história é - se inicia no exato instante em que termina a construção do castelo que não existe e que, no entanto, de sagrado há. Interrupções sempre compartimentadas em gavetas são de repente batidas como se o mundo fosse um copo de leite com bananas. A fome é tamanha que o líquido desce pela garganta sem prestar a menor atenção ao gosto adocicado da fruta, restando, pouco depois, o vômito azedo que a noite expele sem piedade nem pressa. Acho que já não posso mais. Personagem de mim, quero também saltar das páginas negras de todo branco e ganhar a liberdade do ovo, mas o bico-de-pena é estúpido e continua me escrevendo. Fundo a fusão, faço uma confusão que o trocadilho se pune quando se perdoa. Não, realmente não posso mais. Mesmo regado de impávida água, o gérmen da semente não vingou e é inútil fugir da realidade. Sou uma trapezista que se estatelou num solo erosivo, alérgico à chuva, e amanheceu de pernas quebradas, impotente para qualquer consolo. Ovo de granja sem broto.
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É que a história aparece, às vezes, tecida no vácuo. A oferta figurativa permeia o mundo fático, mas a epígrafe não requer nenhuma demanda. O couro cabeludo esconde o trejeito de dedos antigos e fartos, embora, quem sabe, o brilho dos olhos permaneça mesmo na escuridão. É preciso, apenas, a certeza de encontrar no ovo um pouco mais que a omelete salpicada de cheiro verde. O simples se torna complexo logo após o primeiro movimento. Fui posta em xeque pela dor, talvez ela me mate.
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Érica Antunes
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sábado, janeiro 06, 2007

Flashes de infância

Minha avó falava assim: "Lingüiça é que é mistura boa, um pedacinho só e já sustenta". E distribuía os pedaços: "Três pra mim, três pra você, três pro seu vô, três pro Zé, três pro Cleber". Depois apontava a faca para o prato e perguntava, não sei se para mim ou para si mesma: "Acho que dá, né?" Eu nunca concordava, mas ela jamais acrescia a cota de cada um, e, na hora do almoço, a minha fome ficava de olho no prato da mistura. Eu parecia mesmo uma morta-de-fome. Mas era só uma menina em fase de crescimento.
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Estranho vir, assim de repente, essa imagem da minha avó preparando a comida... ela, que detestava os serviços de casa e vivia me dando lições: "Você é muito boa é na caneta, aposto que não sabe lavar uma xícara". Eu ficava brava, às vezes penso que só fingia insatisfação, porque, no fundo, gostava de ouvir que era "boa na caneta". Não queria ter meus parâmetros atrelados à
roupa suja que merecia goma ou ao alumínio que precisava ser areado. E, só para provar que era muito melhor que ela imaginava, lavava a louça do almoço.
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Lavava e pensava com os meus botões: "Por que ela fala da xícara se ela mesma odeia isso?" Alguma coisa não encaixava, estava fora de esquadro, destoava... Só muito mais tarde é que percebi o jogo: minha avó jogava, sim, quem diria?
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Com ela também aprendi a arte da troca. Um dia, eu resfriada, propôs: “Se você tomar esse xarope, pode ficar com o filtrinho que o vô fez”. Eu tinha loucura pelo filtrinho, era idêntico ao de barro que ficava em cima da pia, só que menor. Meu avô era mestre na carpintaria, sabia tudo mesmo e, de quando em vez, esculpia também. O xarope tinha sabor de laranja e me dava náuseas, mas a recompensa valeu!
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Relembro essas histórias todas e um cheiro de café em coco guardado na “tuia” entra-me pelas narinas: estou ali, no fundo do quintal, debaixo da grande mangueira que fez parte da minha infância. Era ali que meus primos e eu cavávamos poços, víamos a avó mexer o tacho de sabão (e que medo de chegar perto daquela quentura!) e corríamos atrás dos frangos.
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Foi naquele fundo de quintal que, muito depois, aprendi que da infância restou o retrato da avó gargalhando no fim de uma tarde de verão.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da foto:
http://www.fazendinhadacanastra.com.br/Cozinha%205a.jpg

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Pedras no caminho

Era naquela rua de terra que a menina descia toda santa manhã para buscar leite. Levava o canecão numa das mãos, a outra ia ocupada com as cinco pedrinhas do jogo.
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- Minha mãe manda buscar dois litros.

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O leiteiro media dois litros de leite gordo e despejava na vasilha. A menina voltava devagarinho, com medo de derrubar o canecão e a mãe brigar.
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Foi lá que pela primeira vez se sentiu pequena. O leiteiro chegou bem no meio do jogo que ia ganhando:
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- Ah, que pena, né?! - lamentou.
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Então, a mulher grande falou coisa pouca, mas profunda:
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- Pena? Nóis não tem pena não, menina.
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A menina se viu menina jogando pedrinhas, viu também a mulher grande e cheia de responsabilidade. Chateou, entristeceu, foi embora apagadinha de tudo.
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Quando crescesse já não teria cabelo encaracolado, dentes-de-leite e sapatos de verniz. Quando crescesse ia trabalhar, usar sutiã e ter um bebê.
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Um dia, também não teria pena. Chorou.
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A mãe foi ver o que era, mas a menina não disse. A mãe era mulher grande e decerto também não tinha pena...
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No outro dia, apanhou o canecão e foi buscar leite. Não levou as pedrinhas.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Escrever era assim...

De repente, o vazio ficava tão cheio que eu precisava vomitar. As palavras surgiam com pressa, havia o risco de, no minuto seguinte, o mundo se transformar numa grande bomba atômica.
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O tempo, afinal, era NADA.
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Érica Antunes
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Fonte da foto: