quarta-feira, fevereiro 28, 2007
terça-feira, fevereiro 27, 2007
Constrangimento
segunda-feira, fevereiro 26, 2007
(En)Fado
de rosa tinge
a vida
e dissolve
aos poucos
o solitário cinza.
domingo, fevereiro 25, 2007
Podia ser uma bandeira...
sábado, fevereiro 24, 2007
Disparate
que o bar da esquina
come na média
mais duas coxinhas.
sexta-feira, fevereiro 23, 2007
Já estive, nunca fui...
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O primeiro dia foi terrível, eu nem sabia o que era uma "patrulha". Na hora do lema, aquela gritaria: "Vem pra minha!", "Corre aqui que é hora da formação!", e eu, feito boba, sem saber para onde ir, acabei enfileirada na "Raposa". Aprendi rapidinho:
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"Reorô-reorá
Nike-nike-naiolá
Zaizô-zaizá
Ipi-ipi-piapá:
Raposa!"
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Lembro outro dos muitos lemas:
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"Tiribum-araruê
Tiribum-aracatu
Tim-tim-catapimba
Rô-rô Castelo Branco!"
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Eu achava tudo tão esquisito, aquela gritaria, parecia concurso de quem berrava mais. Mas era lindo ver todas nós, meninas, iguaizinhas, de saia e camisa cáquis, chapéus, tênis pretos e meias brancas, só destoando na cor do lencinho ao redor do pescoço...
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Apesar de tudo, eu não me sentia feminina, não ali... vivia me olhando e procurando uma ou outra presilha, uma unha pintada, um anel ou pulseira... cadê? E pensava mais: para que aprender a dar laços e nós se nunca vou querer me aventurar numa mata, se vou adorar ficar em casa com meu marido rodeada de filhinhos nos fins de semana?
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Ia pensando enquanto a Gabriela, a chefona, apitava: FORMAÇÃO!
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E lá vinha a correria!
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Credo, até lembrava o "marcha-soldado-cabeça-de-papel"...
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... quem disse que eu queria ser soldado? Eu não!
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E acampar? Deus me livre... tomar água de rio, banho de canequinha, dormir em barracas, ser corroída pelos pernilongos, comer lesminhas e besouros? O que eu estava fazendo ali?
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Já pensou se um dia eu ficasse menstruada no acampamento? Ai, que vergonha, o que eu ia fazer nesse caso?
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Ah!, a Kelly ia me pagar... e eu, burra, por que aceitei? Fui na onda, era moda, tão bonito estufar o peito e falar: "sou escoteira"...
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Lembro-me da Patrícia dizendo que a boa ação daquele dia tinha sido ajudar uma velhinha a atravessar a rua. Mentira da grossa, a tal da Gabriela olhou feio...
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... nunca fui dada a essas coisas, tão pacata, tão quietinha no meu canto... sempre preferi observar...
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Por isso "estive" escoteira e nunca fui. No mês seguinte já não apareci, apesar da bronca da minha mãe, que tinha comprado o uniforme e tudo o mais: "fogo-de-palha", é o que ouvi durante um bom tempo...
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Mas não dava. Eu ia matar a "menina" de dentro e de fora, simplesmente não havia sentido naquilo que vinha fazendo... não para mim.
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... eu gostava mesmo era de pegar meu diário e ficar sentada debaixo da tenda, sonhando, sonhando...
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... de vez em quando escutava:
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"Reorô-reorá
Nike-nike-naiolá..."
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... era meu outro lado batendo à porta: nunca atendi!
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
quinta-feira, fevereiro 22, 2007
O porteiro
.........Fecha.
...................Como vai?
...................................Boa-noite!
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E o porteiro lá,
sem ter para quem dizer
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que o filho nasceu,
..................que o gás acabou,
..................................que hoje tem dor-de-cabeça.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
quarta-feira, fevereiro 21, 2007
Uma mulher no terraço
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Nenhuma razão existe para escrever sobre Laura, exceto o marasmo do domingo visto através da janela. Ela está sentada numa cadeira de área. E no terraço. Sem fazer nada, olhando o vazio, quieta, num descanso, talvez. Mas eu, com essa mania de inventar histórias, num piscar de olhos enxerguei uma mulher e seus dramas.
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Esta é a hora de que mais gosto. A noite, de mansinho, comendo o dia, os azuis e vermelhos do céu cedendo ao cinza e, depois, ao negro. É lindo! E aqui na minha cidade há pássaros por todos os lados. Eles revoam, formam grupos, dançam nas árvores e fazem uma gritaria ensurdecedora. A mulher me pareceu tão alheia a tudo isso, lá, sentada na cadeira, as pernas esticadas, os braços soltos numa atitude despreocupada.
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Depois, imaginei que o "despreocupada" é por minha conta, que cada um sabe bem os problemas que tem (e que se dane a rima!), "onde o calo aperta", como dizia minha avó. Vem, em mim, com a quase-noite, os sons e os cheiros do mundo e a imagem da mulher de vestido de botão na frente, uma sensação de gostosura. Viro uma quase-Maria entrando na casa feita de doces!
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Numa mistura de inocência e culpa, invadi a intimidade de Laura e seu terraço. Talvez porque amanhã seja segunda-feira, talvez porque os cabelos dela sejam curtos, ou, quem sabe, porque estou meio sensível demais. Racionalmente não há, eu sei, nenhuma razão para me impressionar com a cena.
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Laura é uma mulher de meia idade. Deve ter feito macarronada com molho vermelho hoje. Ou frango assado com maionese. Os filhos - talvez os netos - passaram o dia com ela, bagunçaram a casa, ela deve estar esgotada e pensando que amanhã - segundona - tudo começa de novo, e lá vem faxina!
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Daqui a pouco, assim que a noite chegar por completo, entrará em casa, esquentará a comida - resté de l'almocé - e fará o prato para comer na sala, na frente da tevê, junto com o marido gordo e careca que passou a manhã lendo jornal, a tarde toda dormindo e agora arrota a cebola que engoliu feito uma draga.
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Laura é uma mulher triste. Não tem com quem desabafar, cansada da rotina de todo santo dia acordar, levantar, lavar, passar, cozinhar, fazer tricô e ver novela. Faz sexo uma vez a cada quinze dias. O marido perdeu o interesse, ela achou tudo muito estranho no começo, imaginou uma dúzia de amantes, quis morrer de desespero. Depois virou coisa normal, banal, e Laura esqueceu o que é prazer. Virou amiga dos padres, carola, catequista.
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De repente, caio em mim: nunca vi aquela mulher de perto! Dou outra espiadinha pela janela e tenho vontade de acenar: "Oi, vizinha, tudo bem com você?" Mas ela nem está mais lá... entrou, foi esquentar o jantar...
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da imagem: http://www.flickr.com/photos/renatadiem/211930974/
terça-feira, fevereiro 20, 2007
Desfrutos
segunda-feira, fevereiro 19, 2007
Pão de migalhas
Mas não podia mais. A sartreana náusea era minha, a vida se convertia num buraco negro em que varredores de rua se levantavam às quatro e meia para manter as aparências. Também o lixo humano fica preso no abismo colateral das vísceras e, se aparece, é rejeitado, descartado e destruído. Por isso, mais uma vez, me enterneci com a criança chorando diante da obra tão vil e abjeta para o mundo, mas tão bela e tão pura para ela que faz crer que a infância é, de fato, a mais sábia das idades.
Depois, pensei nos carroceiros. Nos dias de hoje, ainda? Leiteiros e padeiros de um tempo que ficou no lá longe, quando, antes de dormir, mamãe deixava a vasilha coberta com um prato para não passar bicho. No outro dia, eu acordava e, com a cara da maior felicidade, verificava: "Manhê, o leite já chegou". Ela vinha apanhar o canecão porque era muito pesado para mim, e eu seguia atrás das chinelinhas cor-de-rosa dela. Mamãe, então, me punha sentada numa cadeira e eu ficava olhando aquela mulher tão alta e bonita preparando o café da manhã. Papai buscava o pão na carrocinha do padeiro e os dois se sentavam também à mesa. Era uma paz tão profunda que eu tinha medo de existir.
Mulher feita, hoje, quero, às vezes, vencer o medo e gozar da mais plena felicidade. Por alguns instantes, consigo, mas, logo que me lembro da sensação que tinha em criança, percebo que o medo do medo é maior que a vontade. Não é fácil transpor barreiras, aquilatar juízos, conferir antídotos. A vida está aí e o mundo não muda. Ou demora tanto que se torna demasiada a espera. E penso com meus botões que, já que é assim, melhor comer as migalhas que morrer de fome.
... ou, quem sabe, com elas amassar um novo pão.
Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
Fontes das imagens:
http://www.flickr.com/photos/kozievitch/207720005/
http://www.flickr.com/photos/kreuz/278558510/
domingo, fevereiro 18, 2007
Desencanto
Há os que acham vantagem
Há, ainda, aqueles que encontram
erica.antunes@gmail.com
sábado, fevereiro 17, 2007
Era uma vez uma só vez...
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Sei menos ainda se a cena que vou contar tem alguma importância, talvez no fim dessa crônica você se arrependa de perder tanto tempo lendo bobagens. Confesso que eu mesma, às vezes, duvido desse meu jeito maluco de ver nas coisas mais que o que elas querem dizer. Na mesma hora, porém, penso que a delicadeza está justo naquilo que a gente nem acredita que cause efeito e que, no entanto, efeito é.
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Estou dando mil e uma voltas e ainda não descobri como começo. Pensei em ir direto à cena, depois ponderei que sem uma gênese é impossível.
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Então, pergunto aos meus botões: digo que estava cansadíssima depois de um dia inteiro de aula, esperando um ônibus que nunca chegava, para rodar mais de duzentos quilômetros ainda? Conto que estava sentada ao lado de uma conhecida e que oscilava entre ficar ali e comprar um saco de biscoitinhos caseiros que uma moça vendia lá do outro lado? Escrevo que fiquei indignada com as quatro crianças descalças pedindo esmola enquanto o pai, o tio ou sei lá quem, bem vestido e de tênis importado, examinava as lixeiras sem disfarçar? E que, naquela noite, a lua era cheia? Que eu tinha um pouco de fome, mas pensava que se gastasse o dinheiro faltaria depois? Que uma velha não esperou a liberação da catraca e passou com a bagagem? Que a bunda da gorda estava tão apertada no jeans que sobravam banhas para todos os lados? Que um homem sentado na cadeira alaranjada do outro lado assobiava?
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Desisto e resolvo nada-falar-falando-tudo:
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Fui comer uma coxinha, é isso. De frango e sem refrigerante. Na mesa ao lado, havia uma mulher com duas crianças. Mãe e filhos, pensei. A coxinha ia se dissolvendo na boca e os ouvidos na conversa alheia. O menino mais novo sentado na frente e a menina de uns quatro anos à direita da mulher. Deusa-Mãe-Toda-Poderosa. Comiam confeitos de chocolate. As crianças, que a mulher só olhava. Havia, também, quatro bombons. Dois para o menino, dois para a menina. Um branco e um preto para cada. Felizes da vida, ambos. Rindo. Contando histórias. Crianças.
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Até que a mãe pediu um bombom para a filha. Que negou. Criança.
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O menino grudou nas mãos os dois chocolates, protegendo-se. Pequeno demais, ele.
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A mulher entristeceu e depois se zangou: "Tá bom, não quero."
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Arrependimento: "Pega, mamãe, eu só tava brincando."
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Mas a Criadora-do-Céu-e-da-Terra, com sua onipotente presença, anunciou: "Não, você ridicou, agora a mãe não quer. Pode comer."
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Condenada, a menina se debruçou sobre a mesa e chorou, chorou, chorou e chorou mais ainda. Era para a mãe comer. Soluço. Ela só tinha brincado quando disse que não ia dar. Outro soluço. Se a mãe não comesse, ela também não ia comer o bombom. Soluços seguidos.
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Era uma vez um bombom.
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Era uma vez uma menina que cresceu antes da hora.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
sexta-feira, fevereiro 16, 2007
Vergonha
quinta-feira, fevereiro 15, 2007
Arroz, feijão, suor e filhos
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Os passos continuam entrando pelos ouvidos, o sangue se contamina e já não sou eu. Passo a personagem de mim mesma e vivo num mundo de arroz, feijão, suor e filhos. São quatro ônibus por dia e salário mínimo no fim do mês. O cobrador cobra o passe e os passos que ouço agora são meus. Faço parte do todo, desse aglomerado de vidas que se escondem debaixo da casca para evitar o peso. Os olhos são turvos, as mãos machucadas, o sofrimento muito.
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Torno à realidade e desejo falar a uma moça que não tome o sorvete da máquina, é de uva, a máquina é suja e vai dar dor de barriga. Nada digo, mas o seu gesto de levar a bola gelada à boca e envolvê-la com a língua me produz engulhos. Deve ter cáries. Cáries e vermes, vermes do marido morto a facadas no bar perto da casa. Engulho maior ao associar o sorvete com o morto. O homem com quem ela trepou anos a fio está morto. O corpo vibrando sobre o dela hoje não passa de um cadáver.
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Minha pele é a da mulher. Tenho um filhinho de cinco anos e faço faxina para o pão de cada dia. Moro na última casa da última rua do último subúrbio, ando de chinelo mesmo em dias de frio, de vez em quando meus dentes reclamam de dor. Nem sei por quê inventei de tomar sorvete. Está frio, ando de chinelo, não tenho capote. E meus dentes doem.
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Feito cobra, saio da pele. A chuva fina é insistente. Olho para o chão e vejo dezenas de barras de calças molhadas. Há pernas tortas, direitas, curtas, compridas, finas, grossas e as do velho. Caminha miúdo por entre as gentes, usa bengala, chapéu e guarda um relógio e sua corrente no bolso da calça. Ninguém o espera. A velhice é que vem apressando os passos.
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Vejo-me, então, deitada de mãos cruzadas num caixão barato. O velório é como tantos, de velas e alguma flor. Terra que me cobre o corpo, escuro mais escuro sem luz no fim do túnel. Durmo em paz. Até quando, não sei.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
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Fonte da imagem: http://www.flickr.com/photos/pedromotta/75406053/
quarta-feira, fevereiro 14, 2007
Rotina
terça-feira, fevereiro 13, 2007
O banquete
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Quer se levantar, mas vê duas marquinhas negras na parede. Parecem mosquitos. Um casal de mosquitos. E são só manchas. Ouve o zunido inexistente. Centenas de ovinhos, de repente, brotam ao redor. Aninha-se também. Dali a pouco haverá festa. O mosquito-pai baterá as pequenas asas de alegria para, logo em seguida, voar para a luz. Morrerá abraçado ao lustre.
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Ele vê tudo.
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Vê tanto e se sente tão cego, rebento solto na palma do mundo, incapaz de responder aos primeiros tapas. No criado-mudo, comprimidos alinhados. Cada hora é uma hora. Os lábios roxos de tédio. Lá fora, os primeiros acordes da primavera. Há a vela. A mágoa. A sombra. Há, sobretudo, um homem desnorteado debaixo das cobertas.
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Nenhum sol, nenhuma flor, nenhuma brisa naquela carcaça. Só um bando de urubus é que aguarda o banquete em alegres sobrevôos.
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Dor de um, alegria de outros. É a lei do mundo.
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Érica Antunes
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segunda-feira, fevereiro 12, 2007
Sarjeta
em que a vida era
o barquinho de papel
que navegava na sarjeta.
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erica.antunes@gmail.com
domingo, fevereiro 11, 2007
Grãos de milho
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Ninguém viu, as dores da minha iniciação no mundo dos grandes foi para os íntimos. Aos cinco anos, tive a certeza de que a vida não era tão bonita quanto eu pensava e que alguns batiam e outros apanhavam.
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Já não era mais o medo do escuro, do bicho-papão, do homem que carregava crianças no saco ou dos ratos que passeavam à noite no porão. Era algo muito mais profundo e dolorido, era o enxergar as injustiças da alma.
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E assim cresci. Mulher, compreendi que muitas dores podem aparecer no meio do nada, bastando um silêncio qualquer para ressaltá-las. E que viver é como passar do método indutivo para o dedutivo sem esquecer do próprio umbigo.
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Percebo essa mudança dia após dia. O que antes representava tanto, hoje nada mais significa. Até com as dores tenho aprendido a lidar de forma mais amena.
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Os grãos de milho, afinal, podem não ter sido tão maus quanto eu imaginava...
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
sábado, fevereiro 10, 2007
Re-Volta
sexta-feira, fevereiro 09, 2007
Mosaico
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Hoje me lembrei de uma mulher que criava porcos no fundo do quintal e se chamava Aparecida - Cida. A casa dela ficava quase em frente à nossa e fazia fundos com o Vinte e Cinco, uma ruazinha tenebrosa, sem água encanada e com esgoto a céu aberto, onde moravam os bêbados e os malandros da cidade. Minha mãe me proibia de chegar perto.
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Nossa casa ficava numa baixada, na esquina, tinha grades bem altas e um pinheiro na frente. Eu morria de medo que o pinheiro ultrapassasse a altura da casa porque o Nenê, um pirralho de uns treze ou quatorze anos que morava na casa do lado, dizia que se isso acontecesse alguém da família morreria. Esse Nenê vivia me pregando peças. Um dia apontou para um fogo bem longe e disse que aquilo era o boitatá. Quase morri de desespero.
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Minha mãe juntava lavagem para a Dona Cida e lembro que todos os dias, ou dia-sim-dia-não, ela aparecia com um balde para despejar a lavagem que armazenávamos na lata de tinta. Às vezes, ficava conversando um pouco, contando sobre as plantas e os porcos. Depois que ia embora, minha mãe comentava que tinha nojo daquela mulher que pintava as unhas de vermelho, fazia permanente do pequenininho e vivia recebendo homens. Eu não sabia o que significava "receber homens", mas imaginava que aquilo não devia ser muito certo. Até que um dia minha mãe contou como é que se faziam os bebês e então fui ficando mais espertinha. O pai da Zezinha ia sempre na casa dela, entrava pelo portãozinho da frente, a cerca era de balaústre e tinha quase um matagal em redor. Aí, eles sentavam um pouco na varanda, decerto para combinar o preço, e depois entravam. A gente percebia a luz da janela da frente acender e depois apagar. Minha mãe não me deixava ir lá, mas eu gostava de ver os porcos e de vez em quando dava uma escapada. Um dia, entrei no quarto dela e vi a cama com uma colcha vermelha cheia de almofadas e a penteadeira lotada de bibelôs baratos. Fiquei encantada!
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Do lado da casa da Dona Cida, ficava a da Dona Dita, que criava frangos e tinha um quintal bem grande, de onde dava para ver o Vinte e Cinco, cuja pobreza me fascinava. No Vinte e Cinco havia sempre uma criança chorando, descalça, de chupeta na boca, chamando a mãe. Lá, tudo era tão distante da minha vida tranqüila e certinha, com casa bonita, empregada, dois carros na garagem, colégio particular e um batalhão de brinquedos. Eu não me condoía, não, pelo contrário. Gostava de ver a miséria. Não era, porém, um gosto de escárnio... talvez de susto. O susto de viver.
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A Dona Dita criava uma neta, a Flávia, que falava "Borchechinha" para a boneca que ganhou da mãe que morava longe, no Rio de Janeiro, com o segundo marido e a filha do novo casamento. Quando a Flávia dizia "Borchechinha" eu queria voar no pescoço dela, aquilo era demais para os meus ouvidos. A gente fazia casinhas debaixo da casa, no porão, e as dividíamos com as galinhas que a Dona Dita criava para uso e para venda. De vez em quando também tinha um bando de cachorrinhos novos. Se não eram cachorrinhos, eram pintinhos ou gatinhos: o zoológico. Morava lá, ainda, uma filha da Dona Dita que já era casada e tinha dois filhos, a Charlene e o Bruno. Muito mais tarde, soube que a Charlene morreu de meningite (ou hepatite? Tem hora que a memória falha.). Ela era uma menininha chata e chorona que atrapalhava as nossas brincadeiras, mas era também muito bonitinha, de cabelo liso e redondo. No aniversário do meu irmão, minha mãe a sentou na ponta do armário para que aparecesse nas fotos. Assim é que a imagem da Charlene ficou imortalizada para mim.
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Eu não gostava de brincar de casinha, só de montá-las. Depois que todos os móveis já estavam no lugar e que, aí sim, era a hora de começar, eu queria parar. As meninas morriam de ódio! Minha paixão de verdade era uns bonequinhos pequetitos que se chamavam "Playmobil". O Marcelo tinha a coleção completa. Eu não, só alguns, com cavalinho, espada e cocar, eram índios norte-americanos. Mas o melhor de tudo era o disco-voador! A avó do Marcelo, que só tinha ele de neto, deu um de presente de aniversário e aquilo era a coisa mais maravilhosa que a gente já tinha visto. Mas o Marcelo nem ligava muito para os presentes porque ganhava muitos e logo estragava tudo. Uma vez, ele quis fazer um barco à vela e pôs uma vela acesa dentro do barquinho de papel debaixo da cama. Pegou fogo no colchão e por pouco a casa toda não foi para o brejo. Com o Marcelo eu ia ao barzinho comprar "sorvete-quente", que não passava de uma maria-mole presa numa casquinha de sorvete e com uma colherinha de brinde. Mas que delícia era aquele doce!
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E que delícia era a vida!
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
quinta-feira, fevereiro 08, 2007
quarta-feira, fevereiro 07, 2007
Cenas mofadas
— Tia, a senhora ainda goza?
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Tão inesperada a pergunta, ali, no passeio público, que ela sequer atinou.
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Quando olhou para trás, o moleque desaparecia no vidro de cola.
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Na filha do banco, o rapaz:
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— Por que a senhora não vai naquele caixa?
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Ela, atônita:
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— Mas aquele é para idosos...
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Ele, solícito:
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— Ué, e a senhora não é?!
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***
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Quando, depois de tudo, abriu a porta da sala e se afundou desconsoladamente no sofá, o gato, num pulo, foi para longe.
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O cheiro da velhice era tão forte que até o bicho percebia?
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Banhou-se de talco e subiu as escadas arrastando a corrente, fantasma de si mesma.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com
terça-feira, fevereiro 06, 2007
O céu
segunda-feira, fevereiro 05, 2007
Verdades e mentiras
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Foi por isso que resolveu deixar de lado o tradicional espaguete com muito molho vermelho do domingo. Nas compras no supermercado, pretextava economia, o salário andava pouco até para o básico, o melhor era boicotarem alguns itens. O macarrão foi o primeiro a ser cortado.
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Filomena protestou. O macarrão? Logo o macarrão, que nem era lá tão caro, tanto sustentava e, ainda por cima, era prato único?! Sim senhora, o macarrão. E desenrolou mil argumentos para convencê-la: a escassa demanda de trigo no mercado que provocava o aumento do preço do produto final, a barriguinha que andava criando graças ao prato domingueiro e, sobretudo, os bons reais que economizariam.
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Ela fez uma cara feia, mas aceitou. Era daquelas que, fosse o que fosse, abaixavam a cabeça. Padilha, vencedor, agigantou-se. Ocultar a verdade nem sempre é mentir, a causa era boa, valia a reputação de Filomena. Além disso, ela seria recompensada na cama, que o som do macarrão quebradinho entre os dentes deixando de atormentá-lo na plena hora mudaria tudo. Fariam horrores, os dois. Filomena tinha as carnes rijas e gordas, uns grandes olhos negros e peitões de bicos sempre espetados. E sem surgir associada ao barulhinho dos fios na boca era ainda mais gostosa. Um tesão!
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Padilha quis beijá-la. Ela virou o rosto, recatada. Não ali, no meio do supermercado...
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Quando fecharam a porta da sala, o marido se jogou para cima dela que, com uma flor entre os lábios, desabotoou-lhe a camisa e massageou-lhe o peito: Oh, peixinho dourado, que tal se tomasse um banhozinho enquanto ela cuidava dos preparativos?
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Filomena pronunciara a senha. "Peixinho dourado" levava Padilha às alturas. Excitado, apanhou a toalha correndo e logo abriu o chuveiro. Mil e uma fantasias desabrocharam num segundo... Que boa tinha sido a idéia de cortar o macarrão!... e como ela era boa em mostrar prazer... também ele não deixava a desejar, desde que os tais barulhinhos de macarrão mastigado não fossem ouvidos. Riu-se. Definitivamente, o único fetiche que não tinha era esse.
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Terminou o banho, secou-se com a toalha felpuda e fez uma careta na frente do espelho: era o bom! Passou um pouquinho de água-de-colônia no pescoço, bem pouquinho, que não queria tirar aquele seu cheiro natural de macho. Correu para a cama.
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Encontrou Filomena de calcinha, a bunda para cima, os peitões sinalizando passagem livre. Não pensou sequer um segundo para cobri-la.
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Ela gozou, ele tinha certeza...
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Depois que Padilha dormiu, a mulher, num gesto minúsculo, tirou o fio do macarrão de debaixo do travesseiro e enfiou-o na boca, inteirinho.
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Érica Antunes
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domingo, fevereiro 04, 2007
Entre os dedos das mãos
sábado, fevereiro 03, 2007
Luz e sombra
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— Meu telefone? Você quer o número do meu telefone?
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Ele, entre sério e vexado, confirmou.
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Ela não tinha cartão. Ele deu um para ela, que anotou no verso a passagem para o pecado.
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Se ele se dotava de segundas intenções, ela não agia de modo diferente. Entre sustos e despertares, a volúpia do desejo se instalou de repente num meio sorriso. Nada mais havia a falar.
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— Ligo pra você no fim da tarde.
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No caminho, ela quis sonhar pássaros, mas eles se emaranhavam nas linhas da arapuca que o irmão armava quando pequeno. O telefone iria tocar... e então, o que fazer?
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— Oi. Estou no trânsito ainda, liga daqui a uma hora?
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Primeiro round: a desculpa. Talvez ele não retornasse e tudo estivesse, de fato, resolvido. A desculpa da desculpa como pretexto para um não. Mas ele era insistente:
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— Hummm... sabe o que é? Estou muito cansada hoje pra sair. Por que você não vem aqui?
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Segundo round: a desculpa! Se ele não aceitasse, a desculpa da desculpa da desculpa teria a culpa e pronto!, questão encerrada.
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No entanto, uma hora depois parava um carro na frente da casa e ele saltava com flores e vinho. Antes mesmo de cumprimentá-lo, ela pensou que se tratava de um profissional. Sorriu e, já com o vaso nas mãos, indicou o sofá. Sentaram-se. Pouca conversa, mal se conheciam. Entre "como está o seu país?" e "quanto tempo vai ficar no Brasil?", o silêncio. E do silêncio, o mote:
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— Às vezes, o silêncio é ensurdecedor.
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Ele escrevia; ela tentava.
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— Sabe que isso dá um verso?
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— É mesmo: "às vezes, o silêncio é ensurdecedor". Bonito o paradoxo.
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Olharam-se nos olhos. Que mais dizer, meu Deus? Sorriram. Ela sugeriu que abrissem o vinho. Procuraram as taças e o saca-rolha. Ela aprovou a habilidade dele. Era, realmente, escolado. Profissional.
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— Vamos brindar?
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— Vamos.
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— Ao no...o...ó...sso encontro!
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Tintins e quetais, ela percebeu que ele, de vez em quando, gaguejava. Quer dizer, quase gaguejava, se é que isso é possível. Sempre que o disco ameaçava enroscar, ele dava um tranco. O pescoço retesava e os olhos como que comprimiam o nariz, uma coisa bem esquisita. Ela quase riu, mas se controlou em tempo.
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Ele tirou o paletó, não sem antes pedir autorização. Ela pensou "pra que tanta frescura se você quer me levar pra cama?" e sorriu discreta e elegante:
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— Faz calor aqui.
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De novo se calaram e, de repente, uma mão grande, morna e macia tocou o braço dela, que deixou. Sorriram-se. "Às vezes, o silêncio é ensurdecedor".
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Os olhos se dilataram: um primeiro beijo. Outro. E outro. A dança das línguas, de quando em vez, era interrompida pela náusea. O gosto dele não era bom. Então ela pensou em pasta de dentes e balas de hortelã e penetrou-se. Com toda febre.
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Depois, acordou assustada com a luz do abajur projetando o gato na parede e se descobriu também sombra.
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Ainda não sabe de quê, mas sombra.
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Érica Antunes
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sexta-feira, fevereiro 02, 2007
quinta-feira, fevereiro 01, 2007
O fim do mundo
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Constrangeu-se com o olhar do cobrador que perguntava aos próprios botões: "Não vai saltar mais, moça?" Fingiu mascar chicletes – toda vez que se vê em situação vexatória mastiga um chiclete imaginário – e pôs-se a brincar com o chaveiro preso no zíper da mochila.
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Desceu num terminal no fim do mundo.
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Aguardou outro ônibus. Qualquer outro que aparecesse estaria bom, desde que o olhar de reprovação do cobrador – tinha certeza de que ele sabia que ela estava perdida – ficasse para trás.
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Deu a volta na plataforma e entrou. Enrubesceu. Então o ônibus era o mesmo?
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Lá estava o cobrador e seu risinho de escárnio.
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Enrubesceu, mascando o mesmo chiclete e brincando com o mesmo chaveiro.
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O fim do mundo definitivamente ainda não era ali.
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Érica Antunes
erica.antunes@gmail.com